Manaus, 22 de novembro de 2024

Crônicas do cotidiano: Todo mundo nasce com o calcanhar pra trás

Fonte: Google Images

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Todo mundo tem o calcanhar para trás e a cabeça para frente! É o certo, mas nem sempre isto acontece sem sofrimento no ato de nascer, num parto normal. A memória de minha Vó tem me visitado ultimamente e suas estórias vêm aos borbulhões. Uns tem medo disso, eu não, até gosto! Diverte a vida, nos obriga a uma conexão amorosa com esse pessoal que se foi, mas fica dentro da gente fazendo cócegas na nossa consciência e, às vezes, nos faz rir à toa, como naquele xote do “Falamansa”, Rindo à Toa. Continuando! Minha Vó colocava a cadeira de embalo na calçada, pontualmente, às cinco horas da tarde. Sentava, abastecia o cachimbo com o tabaco migado quase na hora e começava a pitar. Proseava com quem passava e quisesse perder um pouco de tempo contando as novidades. O “Velho Serra”, cabelos brancos, tipo popular bem conhecido de todos, sempre passava, parava e contava coisas. Más línguas diziam que ele era o “mentiroso oficial da cidade” onde eu nasci. Agora eu sei que não: era o Jornalista Popular dos Faits divers e um humorista com suas piadas picantes e uma maneira divertida de ver o mundo; e, ao final dia, depois da lida e de prosear, passava no botequim, tomava uma doze de pinga e ia para casa.

Há três dias que uma senhora sofria em trabalho de parto e o neném não nascia; o médico do SESP não estava na cidade e a coisa complicou para a parteira, e o povo, curioso, sofria junto. Naquela tarde, ao parar para uma prosa, a minha Vó pergunta: “Seu Serra, afinal, a mulher teve o neném?” Ele respondeu: “Teve, Dona Ana, mas a criancinha nasceu com o calcanhar pra trás!”. A vovó ficou penalizada e quando minha tia chegou ela foi dizendo: “minha filha, a mulher teve o neném, mas o Seu Serra disse que a criança nasceu com o calcanhar pra trás”. Minha tia ficou pasma por uns segundos, mas bem mais nova que os 80 e poucos da mãe, deu por si: Mamãe! O Velho Serra engabelou a senhora! Todo mundo nasce com o calcanhar para trás!” Não preciso nem  reproduzir o que minha vó disse ao Velho Serra no dia seguinte.

Nem a propósito, ao assistir um telejornal do horário nobre, com comentaristas de escol, uma “janela de tela” reproduzia imagens do Presidente da República do Brasil, na praça da Torre Eiffel, em Paris, proferindo um discurso histórico; o comentarista, com sua cara grande, na lateral do vídeo, ria como que debochando do “latino-americano” que passava um pito nos “Ocidentais Europeus”, que fizeram a Revolução Industrial, consumiram as riquezas do planeta e não querem pagar para sua recuperação e, além disso, culpam as vítimas pelo que não fizeram. É possível que isso possa comportar várias leituras, porém  a cara de deboche do comentarista me fez lembrar a história da criança que nasceu com o calcanhar pra trás. O comentarista político, que  não venceu o seu “complexo de vira-lata” (expressão feliz de Nelson Rodrigues para qualificar esse tipo de gente), possivelmente nasceu com o calcanhar no lugar certo, mas a cabeça fora de lugar, o que nos faz sofrer com a vergonha alheia. Essa parece ter sido a sabedoria do Velho Serra, que minha Vó não percebeu na hora, pura figura de linguagem, tanto lá como eu aqui, agora. O discurso do Presidente foi mais que oportuno, ousado! Embora olvidado pelos poderosos de sempre, precisa ser dito por quem nasceu de cabeça para baixo e calcanhar para trás, de um parto político normal.

Não somos mesmo Ocidentais, apenas incorporamos parte da cultura e dos processos civilizatórios por eles impostos. Em sendo assim, tanto quanto a Índia, a China e os povos do Levante, para quem foi inventado pelos europeus o conceito de “Oriente” em oposição ao de “Ocidente”, qualificando povos, raças, línguas, religiões e costumes orientais como desprezíveis, decadentes e atrasados, somos vítimas do mesmo preconceito, com um agravante: para os mais radicais, os latino-americanos são “Selvagens”, coisa que o Presidente Argentino, pensando ser diferente, disse, um dia: uns vieram da selva, “os argentinos vieram de barco” (coisa muito feia). Não somos obrigados a tolerar eternamente o preconceito, seja qual for o seu matiz ou origem!

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