Os que imaginam que um Estado nasce do nada, que uma nação surge no grito e um país resulta de um risco no chão feito com a ponta de uma espada na geografia do mundo são os mesmos, provavelmente, que acreditam que nossa democracia é inabalável, que as instituições estão funcionando a contento e essa estória de “golpe” é coisa de “comunista”, de quem não é patriota e o importante é comemorar o Bicentenário da Independência: um negócio de pai para filho, o grito às margens do Ipiranga e as sólidas fronteiras conquistadas.
Dentro desse projeto das comemorações cabe de tudo, até coisas macabras, que criem pavor no povo ou o desiludam, como por exemplo: levar as crianças aos garbosos desfiles militares ao som das canções marciais, que enaltecem a Pátria e lembram também aos pais seus tempos de meninos e meninas, pois não se sabe o que pode acontecer e o que pretende o mais alto mandatário da nação, com pronunciamentos ameaçadores; contemplar o quadro de Pedro Américo sobre a Independência, que voltará a ser exposto no Museu do Ipiranga, todo restaurado, sem dizer a verdade às crianças, que aquilo é uma alegoria e que, se levada a termos de verdade, sacramenta a ignorância sobre a história de nosso país. Exceto a tinta, tudo ali é alegórico: não eram cavalos, eram mulas; ninguém estava fardado daquele jeito, a rigor; o riacho do Ipiranga estava mais além; o Príncipe estava com dor de barriga, dizem testemunhos da época; e que o quadro foi feito por um pintor competente, mas empenhado em agradar o filho do homenageado, que financiou o pintor e a obra. Alguém já chamou a atenção para o “carro de bois e seu condutor”, à margem dos acontecimentos, representando os subalternos segmentos do povo brasileiro, na lateral esquerda de quem fica de frente para a obra monumental. A arte não imita a realidade, senão deixa de ser arte e passa a ser estupidez, mas é preciso dizer ao povo que ele não está ali. As razões mais nobres do pintor são somente dele e o povo não precisa aceitar essa condição de mero expectador.
O mesmo não se pode dizer do Coração de Dom Pedro I do Brasil e IV, de Portugal. O autoritarismo namora com coisas ligadas à pulsão de morte em busca de heróis que se identifiquem com seus ideais, ou que exacerbem os nacionalismos. A Ditadura Militar e o Salazarismo Decadente, em 1972, transladaram parte dos restos mortais do primeiro imperador, que repousam na cripta do Monumento à Independência, em São Paulo. Agora, receberemos, em visita, o Coração do Imperador, conservado em formol numa ampola e guardado a sete chaves na Igreja da Lapa, na Cidade do Porto (Portugal). E o que dizer ao povo brasileiro? Certamente a verdade: eis o coração pungente de um homem que inaugurou o jeito autoritário de governar o povo brasileiro; que passou por cima de todas as suas aspirações de liberdade; que apagou todos os movimentos libertários contratando guerreiros mercenários para submeter tudo aos seus desígnios; que rasgou a primeira Constituição e outorgou, à força bruta, a Carta que ele queria. Mais tarde, fugindo da convulsão social, foi em busca de outros interesses, como se outra pessoa fosse: valente, liberal como o Porto queria, e magnânimo para com os portugueses, que o acolheram de volta como o herói nacional que os livrou da tirania de um usurpador.
Esse coração verdadeiramente não é nosso, que receba a comiseração respeitosa e retorne intato ao lugar de repouso, enquanto invocamos os espíritos dos que tombaram na Revolução Pernambucana de 1817, na Confederação do Equador, na Cabanagem, na Farroupilha, na Balaiada, na Revolta dos Malês, no Arraial de Canudos, no Contestado, nos “porões das ditaduras” e em outros embates pela Pátria. Invocar, ainda, a força espiritual dos que morrem todos os dias, vítimas da miséria, das chacinas contra subalternos nos territórios de guerra das milícias com as forças do Estado. Todos, Soldados Desconhecidos! E por que não? Comemorar, também, nossas vitórias, vitórias de um povo que ainda tem esperança!
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