Manaus, 4 de dezembro de 2024

Crônicas do cotidiano: Um microcosmo do Levante

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A cidade onde nasci tem muitas histórias, e o meu amigo Erasmo Linhares, que cedo deixou este anfiteatro de guerras, dizia que eu inventava coisas, num ufanismo barato de fazer gosto. Certo dia, numa mesa do Bar Brasil, em Manaus, onde costumávamos fechar a noite, depois da faculdade, lançou-me um repto: “tua cidade, com tanta história, não tem um hino!” Sabia que ainda não tínhamos um hino, hoje temos um dos maiores festivais de música do interior do Estado e é possível que até exista o tal hino, não sei. Porém, não me fiz de rogado, soltei a garganta no ar: “Itacoatiara, Itacoatiara, Itacoatiara, ara, ara. Itacoatiara…”! Foi um momento estupendo, o bar cantou comigo, gargalhamos juntos e isso terminou em sussurros em sala de aula, quando queriam fazer bullying.

A Cidade da Pedra Pintada (Itacoatiara-AM), como microcosmo é uma ideia das minhas vivências e dos acontecidos que pesam sobre a cidade. Nasceu com as povoações formadas pelos Jesuítas, reunindo povos indígenas aldeados, arrebanhados desde o Rio Madeira ao Baixo Amazonas. Falou a Língua Geral (Nheengatu) e foi obrigada por Pombal a virar Vila de Serpa, falando Português. Com o Brasil Império e a abertura dos Portos da Amazônia ao Mundo, foi escolhida pelo Barão de Mauá para ali montar a sede de apoio à sua Companhia de Navegação, trazendo técnicos, ex-escravos e artífices em reparos de barcos, formando o bairro chamado Colônia. Localizada entre Belém e Manaus, foi sempre um lugar propício para receber levas de migrantes, vindo de várias partes do mundo: portugueses, em diversos momentos; norte-americanos, depois da Guerra da Secessão; espanhóis aventureiros; judeus marroquinos e turcos otomanos; japoneses e ciganos. Todos, convivendo pacificamente com nordestinos deserdados dos ciclos da borracha, da juta e do embuste dos “soldados da borracha”. A elite local era oriunda desse caldo, tinha suas nuances e disputas, mas se entendia quando o que estava em jogo era a exploração dos subalternos, normalmente os caboclos e os que, mesmo sendo filhos de imigrados, não lograram sucesso na vida. Com um pouco de cada coisa, foi marcando sua participação na história do mundo. Tanto é que, nas águas caudalosas do Rio Amazonas, em frente à cidade, aconteceu a última batalha que pôs fim à República Velha no Estado do Amazonas, e quem achar que estou mentindo, procure as obras abalizadas do meu amigo e historiador Francisco Gomes da Silva, a Tese de Claudemilson Nonato Santos de Oliveira e as obras de Samuel Benchimol.

Acompanhando essa Guerra no Oriente Médio, fiquei pensando na convivência pacífica que pode haver quando as pessoas de culturas tão díspares convivem, se entendem como humanos e se respeitam nas suas diferenças. O Levante, como era chamada a região onde se encontram, hoje, os Palestinos, os Judeus, os Sírios, os Libaneses, os Egípcios e outros povos Árabes, era parte do Império Turco Otomano, surgido no século XIII e que se desmoronou na Primeira Guerra Mundial, obrigando muitos a deixarem suas terras em busca de sobrevivência mais digna. Falavam línguas diferentes, professavam religiões diferentes e tinham costumes diferentes. Exceto os Judeus, todos eram chamados de Turcos. Itacoatiara permitia essa boa convivência entre os que estavam por lá, ao lado de outros, de outras partes do mundo e do Brasil, embora aqui e acolá houvessem escaramuças religiosas entre cristãos: pároco português e um padre auxiliar conservadores pregavam a guerra contra os Comunistas, contra a Maçonaria, contra Evangélicos refugiados na periferia e proibiam, veementemente, que católicos frequentassem as festas no Terreiro de Santa Luzia, com seu mastro enfeitado de frutas e seus tambores rufando em honra aos Orixás. Essa cidade tão cosmopolita, tão pacífica e acolhedora de diferentes, também era Brasil, fábrica de pobres condenados à mão de obra barata das elites locais e de onde quer que elas estejam; que só oferecia, naquele tempo, aos meninos pobres, o estudo até o quinto ano do Ensino Fundamental. E, para fugir da subalternidade, éramos obrigados a buscar a diáspora, por conta própria e risco. Foi o que aconteceu comigo e com muitos. Nunca mais pude voltar, o mundo me pegou!

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