Manaus, 18 de junho de 2025

CULTURA: a Amazônia Ocidental

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I

Pode parecer impróprio incorporar, em trabalho desta natureza, uma narrativa dedicada ao mundo particular do autor. Mas logo se desfaz a impropriedade quando se vê que essa história traz um testemunho ilustrativo à apreciação de tema aparentemente tão árido. O testemunho está no próximo tópico deste ensaio. Por ora cuido de informar sobre a origem, a escolha do assunto e a roupagem de fantasia de que me amparei ao realizá-lo, pontos que considero essenciais ao interesse do possível leitor.

No elenco das providências adotadas com o nome de Operação Amazônia, efetivada na mesma época em que definia o território da Amazônia Ocidental, – área geográfica situada nos limites da grande Amazônia Brasileira, onde ficam os Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima – e de que se vão ocupar os elementos desta prosa, a administração pública transformava o antigo Banco de Crédito da Borracha no BASA, Banco da Amazônia S/A, que completou sessenta anos em 2002.

A data não podia passar em branco. A instituição possui presença significativa na história do desenvolvimento regional. Era o momento de deixá-la escrita no papel. Seu antigo presidente, o saudoso Prof. Armando Dias Mendes1, pôs mãos a obra e decidiu organizar uma coletânea de ensaios escritos por especialistas sobre a matéria, publicada com o titulo de A Amazônia e o seu banco. O livro alcançou sucesso, animando o mestre a organizar-lhe uma segunda edição, ampliada, agora com o título de Amazônia, Terra & Civilização, em dois alentados volumes, convidando-me a escrever-lhe um trabalho sobre cultura.

Pensei e repensei o assunto e tive momentos de vacilo em aceitar a tarefa. Mas a recusa poderia desapontar o nobre amazonólogo. Segui em frente e movido por um gesto de atenção e respeito ao mestre de tantas gerações de intérpretes da Região, lancei-me ao trabalho. Enchi-me de coragem, reuni os conhecimentos adquiridos ao longo das minhas leituras sobre a questão, a vivência, as observações e a fantasia, reavendo a paisagem e o homem e postei-me ante o teclado e a tela do computador para o trabalho braçal de realização do texto. Trafeguei entre o mito e a realidade, o sentimento e o raciocínio pragmático, até lançar âncoras no desejo de servir, que é a gratificação mais confortadora àqueles que se dedicam à tarefa ilusória de lidar com as palavras.

O certo é que logrei realizar o trabalho, nos prazos estabelecidos e nas dimensões determinadas. Tenho dúvidas se obtive alcançar a qualidade que o organizador sonhou para a sua coletânea. Mas trabalhei com alegria e o texto saiu publicado no referido livro.

Tanto me entusiasmou a tarefa que acabei ampliando a primeira parte e transformando-a neste ensaio. Agora, minha expectativa é responder à curiosidade intelectual do paciente leitor. Sim, porque em regra, o que se percebe em alguns dos mais célebres textos escritos sobre a Região, é um tom de pessimismo que por fim tem marcado a postura mental de toda gente que se arroje às odisseias do tema, com raras e honrosas exceções, desde os clássicos como Euclides da Cunha que viu na Amazônia a última página do Gênesis, a Alberto Rangel do Inferno Verde.

Se de todo não consegui me desvencilhar da escuridão de pessimismo em que fatalmente poderia embrenhar-me, caminhando pelas trilhas selvagens dessa floresta, conscientizei-me de que o homem é um elemento essencialmente dotado da virtude da esperança e, por isso, um dos mais eficazes agentes de transformação do mundo. O que vemos hoje não será a mesma coisa amanhã, porque a sociedade a toda hora se renova como as células de um corpo vivo.

É bem um símbolo desta característica da sociedade o mulateiro ou pau-mulato, uma árvore nativa da Amazônia, que rejuvenesce com enorme velocidade, através da constante renovação das suas cascas, por isso considerada pelos amazônidas como a árvore da juventude. Enfim, no ser humano, onde também nasce a fonte da juventude, quer seja do nosso desejo ou não, ardem as luzes do espírito, manancial permanente da esperança.

De outro modo procurei dotar o texto de alguma fantasia, dimensionando-o aos apelos da imaginação criadora que é uma faculdade de efeito ilimitado, mas sensível às alterações que, em determinadas circunstâncias, se manifestam sob a imposição de limites intransponíveis. Na medida em que nos esforçamos em transformar a realidade, na conquista do espaço ideal ao nosso melhor crescimento, animam-nos os apelos da fantasia que se faz de verdade e de mito.

Vem a propósito o seguinte fato:

O múltiplo artista Jean Cocteau2, ao receber a notícia da morte da cançonetista sua compatrícia Edith Piaf3, recolheu-se ao escritório para compor um lamento sobre a grande amiga desaparecida repentinamente naquele instante. Corria o ano de 1963. Ela contava 47 anos, apenas. A emoção o traiu e trouxe a morte também nesse dia ao festejado escritor. Estava ele com 74, o mesmo número da idade da criadora do L’hinne à l’amour, mas invertido, como que chamando a atenção para a cilada que o destino urdiu em torno dos dois célebres amigos. Pobre Cocteau que se deixava influir pelos caprichos da fantasia e facilmente era arrastado pela torrente de emoções que assalta a todo o momento os homens de sensibilidade!

Alguns dias antes deste que foi um dos mais trágicos para a cultura francesa, dia em que perdeu dois dos seus mais altos expoentes, teve tempo o artista de divulgar o seu testamento poético.

O autor de Les enfants terribles, ante um grupo de jornalistas e produtores culturais, sob as luzes das câmaras fotográficas e de televisão e de cinema, emitiu incisivas declarações de impacto, talvez no intuito de escandalizar as pessoas como era do seu estilo, ou, simplesmente, na intenção de deixar impressa na memória do seu tempo aquilo em que acreditava. Disse o roteirista de A princesa de Clèves, que ele valorizava mais o mito do que a história, porque a história é a verdade que se tornará mentira, e o mito é a mentira que se transformará em verdade. E saiu fornecendo vários exemplos sobre aquilo que afirmava, numa atitude que comprovava, também, que a fantasia é necessária quando se pretende dar vida aos registros da história e os acontecimentos contemporâneos.

Entre os fatos históricos a que se referia, Jean Cocteau alude à passagem bíblica da Arca da Aliança, que aparece no Antigo Testamento. Segundo a descrição constante em Ex. 25.10ss., a arca era feita de madeira de acácia, recoberta com ouro por dentro e por fora, medindo, em sistemas de hoje, 1,30m de comprimento, por 0,70cm de largura e 0,70 de altura. Sobre a tampa da arca se encontrava uma cobertura dourada onde se postavam dois querubins, um de frente para o outro com as asas estendidas sobre a tampa dourada, que constituía o trono de Javé. Tudo sob uma carga de simbolismo que me foge à competência analisar. Mas vale informar que a Arca da Aliança continha as duas tábuas de pedra que remontavam à época mosaica (1Rs 8,9), as célebres Tábuas da Lei. Segundo tradição rabínica, referida em Hb 9,4, não histórica, guardava também um vaso de maná e o bastão de Aarão.

A Arca da Aliança era levada a frente do povo nas suas movimentações nômades e nas guerras. Era conduzida por sacerdotes paramentados com indumentária própria, amplamente descrita nesses textos bíblicos. Depois de inúmeros acontecimentos, de glória e de esquecimento da arca, Davi decidiu levá-la para o novo santuário de Jerusalém, com o povo de Israel em cortejo a louvar ao Senhor, tocando toda casta de instrumentos de madeira, cítaras, violas, tambores, flautas e timbales. Aí se deu o fato a que se refere Jean Cocteau, segundo 2Sm 6. 6 e 7, que vai em seguida: 

 “Mas logo que chegaram à eira de Naccon, lançou Oza a mão à arca de Deus, e a susteve: porque os bois escoiceavam, e a tinham feito prender. E o Senhor se indignou em grande maneira contra Oza, e o feriu pela sua temeridade e caiu morto ali mesmo, junto à arca de Deus”. 

A conclusão do poeta para este acontecimento é que os querubins que encimavam a arca eram construídos de ouro negativo e positivo, entrando, periodicamente, em circuito elétrico. Aproximavam-se da arca imunes ao fenômeno somente os sacerdotes, pois estes andavam protegidos por seus paramentos, vestes que os isolavam dos choques elétricos. Oza fora eletrocutado por sua imprudência.

O poeta, então, comenta que esse fato histórico no mínimo transfigurou-se, após a descoberta da eletricidade mais tarde e na idade moderna com a invenção da lâmpada elétrica.

Os exemplos de mito comprovado em verdade, entre os povos primitivos, são inúmeros. A arqueóloga americana Betty Meggers4 conta que

os povos primitivos consideram-se parte da natureza, nem superiores nem inferiores às outras criaturas, se bem que sejam, frequentemente, superiores a outros grupos humanos. Acreditam que as almas dos seres humanos sejam capazes de penetrar nos corpos de animais e vice-versa e que os espíritos de animais possam exercer um importante controle sobre o destino dos homens”.

Examinando o acervo da infinidade de lendas recolhidas entre os povos nativos da Amazônia, que é a legítima expressão do seu universo mítico, observa-se a presença nas histórias de bichos que falam e homens que se transformam em animais. Isto desde as origens desses povos, porque, em verdade, eles interpretam o mundo e a vida, dominam o meio-ambiente, informados pelo mito.

No entanto, essa comunhão dos homens com o meio-ambiente e com todos os seres que constituem a maravilha da biodiversidade referida pelos povos primitivos através dos seus mitos, está comprovada hoje pelos estudos recentes de cientistas consagrados.

Vejamos o que diz Frank Fraser Darling5, citado por Djalma Batista6, sobre o funcionamento de um ecossistema:

A energia penetra sob a forma de radiação solar, sendo captada pelos organismos produtores, geralmente as plantas verdes, que a armazenam como energia química (alimento). Esta energia-alimento fica então disponível aos organismos consumidores, incluindo os animais que comem as plantas verdes. A energia-alimento pode passar por mais de um elo de consumidores, através de herbívoros, que comem as plantas, de carnívoros que comem os animais menores, segundo uma série chamada “cadeia alimentar…” O ecossistema age como um reservatório de energia depositada no corpo de animais e nas plantas, e atua no sentido de deter o processo de degradação da energia”.

Entre os seres vivos, herbívoros e carnívoros, encontra-se também o homem, na comunhão já interpretada pelo mito. Dá a impressão, à primeira vista, de que a energia talvez seja o verdadeiro nome da alma, não fosse o fato de ser a alma um ente e, por ser um ente, devesse a energia ser a virtude que no ente se origina, segundo observa Edison Farias, em seus estudos sobre a matéria.

 

Em face dessa visão da realidade, cabe especular sobre o sentido de mistério que envolve a vida na Amazônia. Os seus intérpretes no mundo das ciências e das artes são férteis em salientar o lado fantástico e mágico e até sobrenatural dos fenômenos observados na Região. É o caso de indagar se não haveria uma relação cósmica entre a floresta e os rios, as aves, os animais da terra, os peixes e os homens. Sobre os homens a floresta exerce verdadeiro magnetismo. Quem sabe não foram aquelas forças subjetivas as responsáveis pela manutenção dos povos primitivos e, depois, do colonizador e das populações que vieram para implantar os princípios da Cultura Ocidental na Amazônia? Abstraído o aspecto eminentemente econômico do desenvolvimento social, deverá ter havido outros ingredientes, agindo no âmbito do espírito, ou, como queiram os incrédulos, nos ângulos da realidade psicológica, para explicar as razões que levaram o homem a se fixar numa região considerada pelos pessimistas, tão inóspita…

Não gostaria de encerrar esta parte sem referir a um exemplo de comportamento mítico nos hábitos alimentares dos amazônidas.

As parturientes na Amazônia, nos dias de resguardo, só se alimentam de carne de galinha. Os pais, nas providências adotadas na espera do nascimento dos filhos, preparam-se também mantendo no quintal no mínimo quarenta galinhas. Nos quarenta dias de resguardo a mãe só se alimentava dessas aves, uma por dia, sempre frescas. Qualquer outra comida era considerada reimosa. As parteiras da beira do rio assim recomendavam.

E estavam certas segundo a conclusão a que chegou uma equipe de pesquisadores do University of Nebraska Medical Center. Esses pesquisadores apuraram que a carne de galinha contém propriedades anti-inflamatórias. O Dr. Stephen Rennard, da secção de Pneumologia e Terapia Intensiva dessa Universidade, observou que a canja, sopa de galinha, melhora a garganta inflamada e alivia o mal-estar causado pela gripe.

Levando em conta essas razões é que neste ensaio concentrei atenção no mito e na fantasia, requisito que o aproxima dos ramos da arte literária, em cujas águas possuo alguma prática de viagem, muito mais do que nos complexos e encapelados mares dos estudos sociais.

Por me ter motivado a este empreendimento e como preito de gratidão, ofereço este trabalho à memória do ilustre amigo Armando Dias Mendes. Dedico-o, ainda, ao meu irmão Edison Farias, que me socorreu inúmeras vezes, lendo os originais com o lápis na mão, emitindo observações pertinentes logo incorporadas ao texto e alimentando-me de dados estatísticos essenciais ao longo da sua elaboração, e com quem nunca deixei de conversar sobre tais assuntos, tão influentes em nossas vidas. Reservo de outra forma, um bom sentido de agradecimento ao meu nobre amigo Francisco Gomes da Silva, o historiador de Itacoatiara e, então Presidente do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, que se esforçou em prover condições financeiras para a edição de uma separata do texto por conta do Instituto, coisa que, enfim, não aconteceu, mesmo ante o esforço desse nobre amazônida.

Deixo registrado o estímulo de minha esposa Roseli e a sua colaboração no preparo e acabamento da escrita, a atenciosa leitura dos originais com a revisão ortográfica e até com sugestões quanto a aspectos estilísticos da obra.

1 MENDES, Armando Dias (Belém, PA 1924 – Brasília 2012), professor, escritor, especialista em Amazônia.

2 COCTEAU, Jean (Maurice Eugène Clément), (Maisons-Lafitte 1889 – Milly-la-Forêt 1963), dramaturgo, poeta, pintor, romancista e coreógrafo.

3 PIAF, Édith Giovanna Gassion (Paris 1915 – Plascassier 1963), grande cançonetista francesa.

4 MEGGERS, Betty Jane (Washington 1921 – 2012), arqueóloga americana.

5 DARLING, Frank Fraser (Inglaterra 1903-1979), ecologista.                                                                                                                                                                                     6 BATISTA, Djalma da Cunha (Tarauacá AC 1916 – Manaus 1979), médico, escritor, in O complexo da Amazônia.

Nota: Capítulo I da primeira parte intitulada CULTURA: a Amazônia Ocidental, do livro “Vim de igarité a remo”, edição da Academia Amazonense de Letras, Manaus, 2018.

 

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