“A descarbonização, enquanto meta simbólica, pode ser útil. Mas, se não for acompanhada de precisão técnica e consciência ecológica, corre o risco de gerar mais confusão do que soluções.”
A palavra “descarbonização” virou sinônimo de modernidade e compromisso ambiental. Ela aparece em discursos de governos, metas empresariais e pautas de conferências climáticas. Mas será que estamos usando esse termo corretamente? E mais: será que ele é suficiente para representar a complexidade do desafio climático, especialmente em regiões tropicais como a Amazônia?
O carbono: vilão ou base da vida?
Antes de tudo, é preciso lembrar: o carbono não é um vilão. O dióxido de carbono (CO₂), principal gás citado nesse debate, é parte fundamental do ciclo da vida. Ele alimenta o processo de fotossíntese, que sustenta plantas, regula o clima e produz oxigênio. Sem carbono na atmosfera, não haveria vida como a conhecemos.
A crise climática que enfrentamos decorre, na verdade, do excesso de carbono e outros gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera, liberados principalmente pela queima de combustíveis fósseis, desmatamento e agricultura intensiva. Segundo o IPCC, a concentração atmosférica de CO₂ está hoje 50% acima da era pré-industrial, diretamente ligada ao aumento da temperatura global em mais de 1,1°C desde 1850.
foto: Anne Nygård/Unsplash
A crítica conceitual: descarbonizar ou mitigar?
O uso indiscriminado do termo descarbonização pode induzir ao erro de imaginar que o objetivo seja eliminar totalmente o carbono da atmosfera – algo não apenas inviável, mas ecologicamente desastroso. Como alerta o pesquisador do Inpa, Niro Higuchi, “se descarbonizar o sistema de transporte significa substituir o petróleo por álcool de cana-de-açúcar, por exemplo, isso não quer dizer que o sistema ficará ‘sem’ carbono. Para produzir o álcool, é necessário preparar o solo, plantar, colher e processar. Não há como fazer isso sem emissões de GEE.”
Niro Higuchi – Érico Xavier | FAPEAM
Ou seja, o mais adequado é falar em mitigação ou neutralização das emissões líquidas, o que envolve mensurar o balanço entre o que é emitido e o que é removido da atmosfera. Higuchi enfatiza: “Descarbonizar não é o termo apropriado para se referir à mitigação ou neutralização. É preciso ser rigoroso com os conceitos”.
Dados que reforçam o alerta
Ainda segundo Higuchi, a concentração de CO₂ na atmosfera está cerca de 40% acima dos níveis pré-revolução industrial, e as emissões globais de GEE em 2020 foram 55% maiores que em 1990 — ano de referência da Convenção do Clima da ONU, que estabelecia justamente a meta de estabilizar as emissões naquele patamar.
Esses dados mostram que, apesar de décadas de negociações e compromissos, o ritmo de emissões continua crescente. Por isso, é fundamental refinar a linguagem e adotar um vocabulário técnico mais preciso, que oriente ações realmente eficazes.
Fotossíntese, ozônio e produtividade agrícola
Pesquisas revelam que o aumento de CO₂ pode estimular a fotossíntese em algumas plantas (especialmente C3, como árvores e gramíneas), elevando a produção de biomassa. Porém, esse efeito é limitado e pode ser anulado por fatores como escassez hídrica e a presença de ozônio troposférico – um poluente que reduz a fotossíntese e a produtividade de culturas sensíveis como soja e algodão, pilares da agroindústria brasileira.
foto: Juan Giraudo/Unsplash
Grande parte desses estudos foi conduzida em regiões temperadas. Em ambientes tropicais e úmidos como a Amazônia, os efeitos dos GEE, incluindo o CO₂ e o ozônio, ainda são pouco compreendidos. Higuchi lembra que “todas as plantas realizam fotossíntese e respiração; a questão é saber estimar essas remoções”.
Mitigação no contexto amazônico: agir com inteligência ecológica
No lugar de soluções genéricas e slogans publicitários, a Amazônia exige estratégias adaptadas ao seu contexto ecológico. Entre as práticas eficazes de mitigação do carbono, destacam-se:
- Manejo florestal sustentável: Higuchi ressalta que esta é a melhor estratégia. Diferente do reflorestamento, que planta árvores onde já houve desmatamento, o manejo protege e valoriza o que ainda existe.
- Sistemas agroflorestais: combinam agricultura e floresta, fixando carbono e promovendo segurança alimentar.
- Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA): incentivam comunidades tradicionais a manterem a floresta em pé.
- Aproveitamento de resíduos e bioinsumos: fortalecem cadeias produtivas locais e substituem insumos fósseis.
- Ciência tropical aplicada: desenvolver e testar métodos de estimativa de remoções, como Higuchi já realizou com culturas como soja e café.
Urgente é mitigar para restaurar o equilíbrio
A descarbonização, enquanto meta simbólica, pode ser útil. Mas, se não for acompanhada de precisão técnica e consciência ecológica, corre o risco de gerar mais confusão do que soluções. Como disse Higuchi, “é sempre bom não perder de vista os conceitos. Prefixos como ‘des’ e ‘re’ carregam significados fundamentais”.
Portanto, mitigar o carbono – com base na ciência, em ambiente florestal e na perspectiva do equilíbrio – é mais do que um dever climático. É um compromisso urgente com a vida.
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