No Dia Nacional do Escritor (25 de julho), Nina (Escritores de Plantão) postou no grupo a imagem de uma máquina de escrever. Objeto antigo, em preto-e-branco, fora de moda, peça de museu, talvez pertencente a algum saudosista, o que me fez recordar de minha primeira máquina de escrever, num tempo em que nem se pensava em computador.
Começo explicando que aquela a quem chamo de “minha” não era propriamente minha. É que um dia ela foi parar em casa, por obra de alguma boa fada. Melhor dizendo, por obra de um bom fado, se é que, elas, as fadas, existem na versão masculina. E acrescento que não era um fado qualquer: era um fado canadense de olhos azuis!
Pois bem, como é que a gente obtém as coisas? A gente obtém as coisas por aquisição mediante pagamento, por doação, por usucapião, por furto ou roubo, por tomar emprestado e não devolver ao dono, e tantas outras formas. Porém a minha máquina foi obtida por aparição. Sim, é isso mesmo. Certo dia, a máquina apareceu e se instalou numa mesa lá de casa. Não digo que ela apareceu assim do nada. Pois nada aparece gratuitamente em nossa vida. Mas, que apareceu, apareceu.
Explico. Meu pai, na época, era presidente de uma associação de moradores do Bairro Santa Luzia, em Itacoatiara. Eu, aí pelos meus 16 ou 17 anos, ajudava na burocracia, preenchendo fichários, fazendo atas, arquivando documentos. A documentação era escrita à mão, com esferográfica BIC (uma Brazil in concert, para os íntimos). Aconteceu que, num certo dia, Padre Luiz (esse era o nome do fado canadense), apareceu em casa com uma máquina de escrever (a dita!) e não disse se era doada, emprestada, comodatada, e foi entregando a máquina para meu pai, para os serviços escriturais da associação. E das mãos de papai passou imediatamente para as minhas, eu que já era o encarregado dos ditos serviços escriturais. E, por esse ato de aparição e transferência, a máquina, na prática, passou a ser minha. A minha primeira máquina de escrever. Antes dela somente tinha usado as máquinas da Professora Mirtes Rosa de Mendonça, no curso de datilografia.
Quando me referi a Padre Luiz como sendo fado, não estava pensando nas suas atividades de pároco, senão por um motivo que somente a mim dizia respeito: é que eu gastava muita fita (fita de máquina, insumo completamente desconhecido para os jovens de hoje). E gastava não apenas com os serviços escriturais da associação, porém, muito mais com os meus escritos particulares. E o fado canadense fazia a reposição das fitas sem pedir explicações mais detalhadas. Assim, foi ele quem, sem saber de nada, apadrinhou os meus primeiros textos literários. Esse fado padrinho jamais viu um texto meu, que naquela época era mais copiado do que criado.
Copiar não é nenhum desdouro para ninguém. Vou mais adiante, aconselhando aos jovens que copiem sem medo, pois, quem copia não vai copiar qualquer coisa; quem copia sabe o que copia, a quem copia, com que intenção copia. Ou seja, quem copia homenageia alguém que considera muito bom pra ser copiado e imitado. Não estou falando de plágio, não. Falo de cópia mesmo, transcrição fiel de trechos de poemas, contos, pensamentos, com identificação autoral. Cópias para serem guardadas como coleção. Copiar é como tentar caminhar o mesmo caminho trilhado pelos autores ao produzirem seus originais, e buscar entender como eles fizeram isso. Depois de certo tempo a gente vai passando do copiar ao criar. E aí nessa fase, na fase do criar, ninguém ensina a ninguém. É autodidatismo puro. Por isso precisa de prática constante, até acostumar a gostar. Tornar hábito. Quem sabe até virar uma necessidade fortificadora, uma dependência química, quando, então, a gente começa a sentir que um dia sem escrever é um dia despedaçado? (Agora estou imitando Chaplin que disse: “um dia sem sorrir é um dia desperdiçado”. Não é assim, Ruy Fonseca?).
Não é que se pretenda atingir a teclada perfeita, o escrever beleza, ser o cara que arrasa. Não é nada disso. É que o bem escrever é quando a gente se sente bem em escrever pra gente mesmo. É assim, vital, muito simples. É algo para a gente se sentir livre, se sentir podendo dizer, deixando fluir o espírito, permitindo que a alma se encha de graça, pondo a Lili para voar (que tal, Sueli?). Não pretendamos, pois, salvar o mundo com literatura; melhor que procuremos salvar a nós mesmos com nossas própriasescrituras.
Voltando à máquina de escrever: como essa máquina era de origem canadense, faltava nela alguns caracteres para quem redige em língua portuguesa. Então, depois de datilografado o texto, passava-se à fase manual de colocar com caneta esferográfica os acentos gráficos (til, agudo, grave) e o sinal cedilha. Se aqueles meus velhos textos não possuíam valor literário, pelo menos ficavam muito engraçados com a arte final.
Voltando ao fado: os portugueses costumam chamar de fado vadio o modo de uma pessoa comum (ou mesmo cantores profissionais) cantar o fado sem interesse comercial, geralmente em bares ou tascas, apenas pelo gosto de compartilhar emoções. Então, nada mais parecido com o espírito de quem acredita que bem escrever é quando a gente se sente bem em escrever pra gente mesmo… mui vadiamente.
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