Manaus, 7 de julho de 2024

Este é um País sério?

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Meados de 1961. Início do contencioso entre Brasil e França, denominado, jocosamente, pela imprensa da época, de “A Guerra da Lagosta” – episódio que girou em torno da captura ilegal de lagostas, por parte de embarcações francesas em águas territoriais brasileiras, ao largo do litoral de Pernambuco. A crise extrapolou as relações diplomáticas entre os dois países, chegando ambos a mobilizar os seus recursos bélicos. A questão se estendeu até 1963 e felizmente sem maiores consequências. Consta que o presidente francês Charles de Gaulle (1890-1970), inconformado com o gesto performático do presidente do Brasil, João Goulart (1918-1976), teria assim se expressado: “O Brasil não é um País sério”.

À época, aos 16 anos de idade, trabalhando como jornaleiro em Itacoatiara, semanalmente eu recebia para revender na cidade, – entregues pelo comandante do navio/motor “Itapuranga”, da Empresa Ademar Mendes Pacheco – 100 exemplares do jornal “O Trabalhista”, editado em Manaus pelos correligionários do ex-governador Plínio Ramos Coelho (1920-2001), que havia ‘rompido’ com o então governador Gilberto Mestrinho (1928-2009), e cerca de 40 exemplares da revista “O Cruzeiro”, editada pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand (1892-1968).

Um dia eu tirava para entregar “O Trabalhista”, cujos compradores, plinhistas, eram em número certo e confiáveis. No outro, levava “O Cruzeiro”, para uma clientela mais chic: comerciantes, bancários, professores, chefes de repartições. Mas, antes de fazê-lo, comprazia-me em manusear um exemplar dela, detendo-me à leitura da reportagem de David Nasser (1917-1980), na primeira página; de lá, visitava a charge d’O Amigo da Onça, assinada por Péricles de Andrade (1924-1961), criada para fazer jornalismo crítico e em muitas situações esculhambar instituições e a hipocrisia no jogo de aparências. Com a morte de Péricles, aos 31 de dezembro daquele ano de 1961, O Amigo da Onça foi continuado pelo jornalista Carlos Estevão de Souza (1921-1972). Finalmente, após visualizar O Amigo da Onça, ia apreciar a crônica de Rachel de Queirós (1910-2003), na última página.

Graças a “O Cruzeiro” pude conhecer, além da “Guerra da Lagosta”, a renúncia de Jânio Quadros (1917-1992), a posse de João Goulart e outros grandes acontecimentos que abalaram o Brasil, à época. Essas e outras notícias mexeram com o meu ego. “A Guerra da Lagosta” insuflou em mim o espírito nacionalista. Desde então, a mente do rapazola idealista e admirador de João Goulart passou a agasalhar um ódio mortal ao general francês. Durante muito tempo evitei coisas que se lhe dissessem respeito, quaisquer notícias ou até uma simples referência.  Decorrido mais de meio século, ainda hoje, aos 70 anos de idade, me pergunto: de Gaulle teria razão? O Brasil não é um País sério?

Contestando o sentido generalizador da frase do general francês, respondo: o Brasil é parcialmente sério. De qualquer sorte, não podemos esconder os lamentáveis acontecimentos dos últimos tempos em nosso País. A classe política tem priorizado o interesse pessoal em detrimento do público. A corrupção está presente em boa parte da vida brasileira. Crescem o fisiologismo e o clientelismo em nosso tecido social. Perplexos, os cidadãos bem criados, honestos e responsáveis, respaldados nos bons exemplos de seus pais, que amam de verdade este País, não estão satisfeitos, protestam e exigem mudanças.

Certa feita alguém escreveu: no Brasil, a vida é uma calamidade em prestações. Verdade: tanto na área política quanto na empresarial, os escândalos não param. São fatos dominantes: o aparelhamento do Estado, o caixa 02, licitações fraudulentas, propinas quando da contratação de obras públicas, contas no exterior, altas somas em dinheiro vivo guardado em casa. A novidade é que alguns culpados já vêm sendo punidos. Mas, há preocupações quanto à frouxidão das penas e dúvidas quanto ao efeito pedagógico da maioria dessas punições. Geralmente, depois de delatarem seus comparsas, os criminosos pegos abastecendo políticos com dinheiro público, são condenados a ‘devolver’ pequeno percentual das altas quantias desviadas e findam sendo premiados com o regime de prisão domiciliar.

Muitos destes ‘apenados’ não passaram um único dia na cadeia e foram autorizados a se recolherem ao conforto de suas casas, onde poderão matar o tempo entre a piscina, quadra poliesportiva e a churrasqueira. O lado mais triste disso tudo é o exemplo que estão propiciando aos seus filhos e netos – potenciais candidatos à prática de crimes, futuros operadores de trambicagens. Estas crianças, agora felizes brincando na piscina com os pais (ou avós), quando crescerem, além da confirmação de suas contas no exterior, certamente estarão especializados em agiotagem, contrabando, tráfico de influências e outras atividades próprias do mundo do crime.  Homens feitos, bem relacionados e sem problemas financeiros, se eventualmente presos, em público negarão os fatos. Mas, em família e entre amigos, dirão: “Se nada aconteceu com meu pai (ou com meu avô), que me deixou fortunas, posso roubar tranquilamente; sou inocente, nada me acontecerá”.

Todos os brasileiros sabem que o ‘condenado’ Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, repousa em sua mansão na Praia do Futuro, em Fortaleza, protegido por muros altos e cercas eletrificadas. Paulo Roberto Costa, ex-gerente da Petrobrás, vive num condomínio exclusivo em Itaipava, na região serrana do Rio de janeiro. Pedro Barusco, ex-gerente da mesma estatal, aproveita o sol em Angra dos Reis. No ano passado foi fotografado à vontade numa cadeira de praia, dando baforadas num charuto e se refrescando com um copo de cerveja. Ele foi beneficiado com o regime aberto, que dispensa a companhia da tornozeleira eletrônica. Idêntica situação é a do ex-diretor da Petrobrás, Nestor Cerveró, que na última sexta-feira (24/06) deixou a carceragem da Polícia Federal em Curitiba, onde ficou preso durante um ano e cinco meses. Ele fechou acordo de delação premiada e agora vai cumprir pena em prisão domiciliar em sua cinematográfica mansão, cercada de árvores e belos jardins, situada na região serrana do Rio de Janeiro.

O brasileiro médio é reconhecido por ter memória curta. Muitos já se esqueceram da Copa de 2014, em que a Seleção do Brasil foi eliminada ao perder para a Alemanha pelo desconcertante placar de 7 x 1. Os jogos, além de prejudicarem a economia do País, fizeram com que sua imagem ficasse manchada e deteriorada. Segundo a análise do economista americano Andrew Zimbalist, autor do livro “Circus Maximus”, sediar grandes eventos esportivos traz poucos benefícios para a economia dos países. Pelo andar da carruagem, tudo indica que os desacertos de 2014 se repetirão na Olímpiada de 2016: os prejuízos e a desmoralização respingarão no Amazonas. Construída para a Copa de 2014, a Arena da Amazônia custou 600 milhões de reais – quantia resultante, em maior parte, de empréstimos a juros altíssimos: quando quitada, daqui a vinte anos, a conta estará no mínimo triplicada.

Manaus, que deve sediar seis partidas de futebol, recentemente foi ameaçada de ser cortada dos Jogos Olímpicos do Rio. Isso em razão de haver atrasado a contratação do serviço e montagem de estruturas temporárias da Arena da Amazônia. Serão mais oito milhões de gastos em adaptações do estádio e aquisição de estruturas temporárias para o evento. Somente isso é visível; por baixo dos panos a ‘coisa’ será bem maior.

A falta de seriedade em nosso País não viceja somente na administração e na política. Além de crônica, ela é perpetrada em todos os cantos e sob muitas roupagens. Durante a passagem da tocha olímpica por Manaus, a ideia de utilizar animais selvagens na cerimônia, no pressuposto de demonstrar para o Brasil e para o mundo que o povo amazonense vive em harmonia com a natureza, resultou na morte da onça pintada, o macho “Juma” – mascote do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), segmento do Comando Militar da Amazônia – sacrificado depois de participar do evento. Se os humanos, a rigor, não são solidários uns com os outros, como esperar serem amigos da onça?

Pelo que apreendemos das imagens publicadas, a onça acorrentada, vigiada por dois militares, estava em frente aos condutores da tocha acesa fazendo fotografias. Profundamente estressado, o animal, quando era levado de volta à jaula, conseguiu fugir. Um grupo de veterinários e militares tentou recapturá-lo com tranquilizantes, mas ainda assim reagiu; quando ameaçou atacar um militar, foi baleado e morreu. O mundo inteiro condenou o acontecido. Mais um motivo para galhofarem do Brasil. O fato, aparentemente simples e sem nenhuma consequência, denuncia um péssimo exemplo, exige reflexão e uma mudança de comportamento.

Segundo confirmado por veterinários, uma onça criada em cativeiro já está em uma situação de estresse, até mesmo por questão de espaço. Quando colocada em um ambiente barulhento com muitas pessoas em volta, a tendência é piorar o nível de estresse. Mateiros do interior, mais sábios, ensinam: o fogo é um dos instrumentos utilizados para espantar animais na floresta. Quando em atividades noturnas, para dormirem sossegados, esses trabalhadores da selva acendem fogueiras ao redor de seus acampamentos, e as onças não se aproximam. Portanto, segundo a psicologia da floresta, onça fica assustada mesmo que diante de um simples fogaréu. Neste caso, que outro comportamento esperar do macho “Juma”, senão o de ficar agressiva, em face de uma tocha acesa diante de uma multidão em delírio?

Resultam mais tristes as esfarrapadas desculpas do setor de informação do Exército, órgão que mantém em suas dependências mais de dez onças cativas: “Juma” estava sendo levada para exames com veterinários e “por acaso” participou do evento.  Espantam, ainda, o escorregadio comportamento e a leniente posição do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), segundo a qual “a onça não tinha autorização para participar do evento e da passagem da tocha, mas que ainda precisa de mais informações para tomar providências cabíveis”. E, para completar a lambança, há o “pedido de desculpas” do comitê organizador dos jogos olímpicos, manifestando-se em nota que errou ao permitir que a tocha “símbolo de paz e união entre os povos fosse exibida ao lado de um animal selvagem acorrentado”. Puro teatro, encenação tendente a impressionar e iludir a opinião pública.

Nota 10 ao jornalista esportivo de “A Crítica”, Enock Nascimento, que em 22 de junho reportou assim o assunto: “O problema é que no Brasil só se pensa na imagem e não na essência, e do mito da tocha a única semelhança que ficou é que, pelo cheiro de fumaça, teve roubo na história. E o pior é que isso não é só em Olímpiadas ou Copas que precisamos lidar com os significados de ser sacrificado. Tudo porque somos governados, no pior sentido da expressão, por ‘amigos da onça’”.

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