Sempre tive em conta que a brincadeira folclórica do boi-bumbá, tal como a conheci ainda menino pequeno, pelas bandas da Avenida Airão, onde nasci, e da forma que meu pai gostava de contar – ele que foi criador e almirante do “Brigue Independência”, de tantas vitórias -, tive em conta que o boi tinha algumas figuras exponenciais, destacando-se a Catirina e o Pai Francisco.
Não posso esquecer, jamais, que era o verso do Amo que mais me chamava a atenção no desafio que ele cantava, rua acima rua abaixo, na disputa que me acostumei a ver entre “Mina de Ouro” e “Corre-Campo” que vagavam pela Manaus daqueles anos guiados por lamparinas e pedindo licença ao dono da casa para uma apresentação especial, que sempre valia um trocado.
O original de toda essa história é o conhecido “auto do boi” ou “auto sacramental” muito bem-apresentado no Brasil colonial, inclusive por nossas bandas nortistas, com alegorias e elementos bastante dramáticos, as quais remontam ao tipo de encenação criada pelo escritor português, Gil Vicente, e que, como se deduz nos tempos mais modernos, foi usado com o objetivo de catequizar os povos não europeus, sincretizando expressões de matrizes africanas, europeias e indígenas.
A versão mais tradicional ensina que Catirina, grávida de seu Pai Francisco, manifestou o “desejo de gravidez” de comer a língua do boi mais bonito da fazenda onde trabalhavam na condição de africanos escravizados. Por essa razão, essas figuras sempre foram apresentadas como pretos, e, sendo o boi-bumbá uma brincadeira para homens, elas eram interpretadas com os exageros e as mascarações conhecidas, talvez por isso não era qualquer brincante que gostava de interpretar Catirina e Pai Francisco. Havendo sempre alguma resistência, possivelmente por entenderem que seriam figuras menores no conjunto do auto.
Curioso notar que, mesmo assim, eram esses figurantes que costumavam ser os que chamavam mais atenção das crianças pelos tipos e trejeitos que faziam questão de exagerar durante os espetáculos, elas que ficavam encantadas sem perceberem a verdadeira tradução de suas existências.
No Festival de Parintins ao qual fui apresentado em 1970 e por ele desde então me apaixonei, e anos mais tarde tive o privilégio de ajudar a realizar por cerca de 20 anos e contribui para que ganhasse novas dimensões, outras figuras conquistaram maior expressão, seja pelo porte, pelos trajes e pelo papel a desempenhar no novo auto que foi sendo escrito e apresentado como fruto da genialidade inigualável do parintinense, e, até certo ponto, a Catirina e o Pai Francisco quase sumiram de cena, tal como o padre que fazia suas rezas para ressuscitar o boi e que cedeu terreno ao pajé.
Parece relevante a nova versão que essas duas figuras do antigo auto passam a assumir nessa festa de grande valor: exprimir a resistência da negritude, exprimir a presença de ambos sem os trejeitos e defeitos que eram aplicados antigamente, caricatos que eram, para serem interpretados por uma mulher e um homem pretos, sem fingimentos, de modo a representarem o entendimento que começa a se firmar – agora de verdade – de que somos um país multirracial e multicultural e muitos e muitos não precisarão mais fingir que não há racismo, abrindo o palco do maior espetáculo do folclore popular do boi-bumbá para a presença real de Catirina e Pai Francisco, os quais, ainda assim, não rompem os laços originais com o auto de Portugal e a função que ele desempenhava na catequização pela Igreja europeia.
Com isso, no palco e na vida, reafirmam o valor da raiz africana do povo brasileiro e do amazônida por excelência.
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