Manaus, 26 de outubro de 2025

Glauber na terra das águas

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Sobre Glauber Rocha posso mesmo dizer que onde nossos destinos se cruzaram, tivemos muitos embates intelectuais. No final do anos 60, um pouco antes de Glauber realizar Barravento, começamos uma troca de correspondência, em que o assunto básico era o cineclubismo, movimento cultural bastante intenso naqueles anos. Eu pertencia ao GEC- Grupo de Estudos Cinematográfico do Amazonas, cineclube liderado pelo saudoso Cosme Alves Neto, e que provocou uma verdadeira revolução cultural em Manaus: Glauber era da alta direção do cineclube de Salvador, dirigido e animado pelo lendário crítico Walter da Silveira. A vida do movimento cineclubista era intensa, cheia de surpresas, onde as bruxuleantes projeções na bitola de 16mm, as cópias surradas e as inúmeras interrupções na sessão, não impediam a alegria e o prazer de conhecer os clássicos do cinema. E se falava muito de política e realidade brasileira. Não é de surpreender que as cartas de Glauber fossem quase sempre comentários desabusados sobre a realidade política nacional, especialmente em relação ao golpe militar de 1964. É claro que sobrava espaço na nossa correspondência para falar mal do Rubens Biáfora, para acusar Fellini de místico e Bergman de reacionário burguês, restando na nossa admiração as obras de Bufiuel, Eisenstein e Kurosawa. Mas nem sempre concordávamos, para dizer a verdade, quase nunca concordávamos, especialmente em questões ideológicas e eu sempre desconfiava que por trás da iconoclastia de Glauber estava um direitista de plantão. Paulo Gil Soares me dizia: -Glauber é um reacionário. Imagina que não deixa a Anecy namorar com ninguém.

Em 1966 nossas trocas de cartas ficaram mais rarefeitas, e as últimas se referem ao desejo de Glauber em conhecer o Amazonas.

Em 1966 estava no governo o professor Arthur César Ferreira Reis, e na Secretaria de Turismo o escritor Luiz de Miranda Correa.

Convenci este último a convidar Glauber para fazer um filme no Amazonas. O professor Arthur Reis aceito a idéia e manda oficializar o convite, que chega justamente no momento em que Glauber ia preso por se manifestar, junto com outros intelectuais, contra a reunião da OEA. Que se realizava no Hotel Glória, no Rio. Mal sai da cadeia, ele parte para Manaus, onde fica por cinco semanas e roda um de seus mais famosos documentários, “Amazonas, Amazonas”, em que o seu olhar de nordestino se mostra perplexo frente à exuberância da natureza e porque quase nada restava da presença material da cultura colonial barroca, como era comum em Salvador. Depois de sua passagem amazônica, não trocamos mais correspondência, mas mantínhamos contato e Glauber nunca esquecia de me convidar para as suas estreias. Nossas posições políticas foram cada vez mais se distanciando, mas nunca perdemos o terreno comum do cinema e do amor pelo Brasil. Em 1981, estando em Paris, recebi uma ligação de Darcy Ribeiro, convidando-me para jantar com uma pessoa que ele não podia revelar o nome. Darcy também não aceitava uma recusa. É claro que aceitei e lá fomos nós, eu, Darcy e Cláudia Zarvos ao encontro desse misterioso convidado. Caminhamos pelo Boulevard Edgar Quinet, até que chegamos a um bistrô onde um tipo vestindo um enorme poncho de lã de vicunha vociferava contra um apavorado garçom, em castiço francês com malemolente sotaque bahiano: era Glauber.

E o motivo do mistério é que ele cismara que nossas relações estavam cortadas, apenas porque fizera uma ou duas referências críticas a meu respeito em seu alucinado programa de televisão, o Abertura, na extinta TVTupi. Desfeito o engano, fomos jantar e bater papo no Procope, o café mais antigo do mundo. Mas esta já é outras estória glauberiana.

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