A cria de casa
Foi costume antigo, em Manaus, encomendar aos donos de embarcações, aos regatões, aos seringalistas e aos diretores de índios, crianças já crescidas, de ambos os sexos, a partir dos dez anos de idade, filhas de índios, de cabocos ou de nordestinos, para trabalharem nas casas das famílias da cidade, nos serviços domésticos, como amas dos recém-nascidos, para varrer e cuidar das casas, as meninas, e para os recados, as compras e os pequenos serviços, como o de carregar bolsas, cortar lenha, cuidar do quintal e dos animais domésticos, os meninos, em verdadeiro regime de servidão, recebendo apenas moradia, roupa e comida, embora alguns patrões lhes concedessem a possibilidade do ensino primário. Os pais raramente os visitavam, abandonando-os ao Deus dará, agradecendo pelo menos a possibilidade de suas sobrevivências, ante a miserável vida que levavam, com suas enormes famílias, no Interior. Às vezes eram filhos de famílias desfeitas pela morte de um pai, pela malária, ou de uma mãe, na flor da idade, por um parto difícil, sem assistência.
Tempos difíceis com as grandes distâncias a percorrer, falta de transporte para a produção, e tudo a remo ou reboque, em suma, uma vida extenuante e carente, sem futuro, melhor perder os filhos para quem pudesse alimentá-los, do que os perder, para a fome, para as doenças, para as más condições de vida. Assim milhares de pessoas foram criadas, não só em Manaus, mas em todo o Amazonas e no vizinho Pará, onde houvesse alguém para lhes dar casa, comida e roupa, uma espécie de servidão que ultrapassara os tempos.
Eram crianças de todos os tipos, sem qualquer formação doméstica, desconhecedoras da cultura urbana e muito revoltadas por se julgarem enjeitadas, em uma época imprópria, para esse acontecimento. Também podiam cair em mãos de famílias sem princípios cristãos, que as exploravam e as tratavam sem amor, criando personalidades rancorosas e vingativas.
Talvez isto tenha ocorrido com a participante da história que vamos contar.
Em casa do centro de Manaus, em plena década dos anos vinte, um jovem casal, unido pelo casamento há pouco mais de um ano, tivera lindos gêmeos.
A mãe não tinha a experiência para cuidar de recém-nascidos, além do mais a dose era dupla, e eles choravam demais, talvez cada um reclamando mais atenção que o outro. Tudo era feito, mas não se conseguia acalmar os dois bebés, até que uma vizinha, talvez incomodada pelo choro diuturno das criancinhas, sugeriu que ela mandasse buscar, no interior, no baixo Amazonas, uma cunhantã para ajuda-la na criação dos bebés.
A família tinha ligações com fazendeiros daquela região e logo conseguiu encontrar uma cunhamboca de uns quinze anos, para ajudar na criação dos meninos.
A ajuda veio mesmo a calhar, pois em um mês eles deixaram de chorar. Agora, ficavam sempre calados, como que procurando ouvir a aproximação de alguém, pelo som.
O casal estranhou a mudança e levou os filhos a um médico, ficando constatado que estavam cegos.
Forçada a dizer o que acontecera, a mocinha confessou que furara os olhos dos dois, com um espinho de laranjeira, para pararem de chorar, como se fazia com os passarinhos novos, no interior. E assim conseguira uma solução não convencional, para a choradeira, método inconcebível para um civilizado.
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