Manaus, 21 de novembro de 2024

Histórias esquecidas

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A capivara

A capivara é o maior roedor do mundo, pesando até 91 kg e medindo até 1,20 m de comprimento e 60 cm na altura. Pertence à mesma família das pacas e das cotias e, podemos dizer que se trata de um rato gigante. Habita os capinzais das beiras dos rios e várzeas, daí o seu nome capi+uara= morador do capim. Sua carne é gordurosa e nutritiva, sendo muito abundante nos primeiros tempos, na Amazônia, diminuído progressivamente a sua quantidade, pelo consumo e também pela caça predatória visando o seu couro, exportado aos milhares. A sua gordura era considerada similar ao óleo de fígado de bacalhau, rico em vitamina D, sendo denominado de Capivarol. Servida assada, cozida ou frita, devido ser por muito gordurosa, conservava-se por muito tempo, sem estragar, como as mexiras do peixe boi, a carne frita mergulhada, na banha, como um bom paio português.

Quando meu avô Areal Souto, recém-formado em Direito, pela Faculdade do Recife, foi para o Acre, em 1910, aos vinte e quatro anos de idade, o seu primeiro emprego foi o de administrar o seringal São Pedro do Icó, pertencente ao grande seringalista Childerico Fernandes.

Nele, como em todo seringal, havia uma sede, pequena localidade, onde estavam situadas a residência do proprietário ou do seu representante, as residências dos auxiliares da administração da propriedade e os depósitos dos aviamentos e dos estoques de borracha. Todo seringal, que se prezasse, deveria ter um porto próprio, com lenha para vender, como combustível, para as chatinhas e outras embarcações que passassem pelo rio, subindo ou descendo, a sua própria lancha ou navio, nele ancorado, além de dezenas de bolas de borracha bruta defumada, aguardando a passagem da embarcação pertencente à firma de Manaus ou Belém, que aviava o seringal.

A casa do seringalista geralmente era do tipo palafita, em cujo porão abrigavam-se as criações do seringal: patos, galinhas, porcos e carneiros, ao cair da tarde, destinadas ao consumo nos dias festivos. Algumas possuíam todo conforto possível, naquele tempo, como piano, sala de jantar para as visitas, livros, quartos para hóspedes e outros requintes mais. Toda sede tinha cozinheiro e caçadores, geralmente cabocos amazonenses conhecedores das matas e dos rios, que abasteciam a vivenda com peixes e caça, enquanto a tarefa de extrair o látex das seringueiras e defumá-lo, transformando-o em pelas negras como azeviche e perfumadas com o cheiro de toucinho de fumeiro, pertencia aos nordestinos, na sua maior parte cearenses. Na sala de jantar da sede do seringal, estando ou não a família do proprietário, participavam das refeições o gerente, o guarda-livros e as pessoas gradas ou os vizinhos amigos, que passavam pelo porto, descendo o rio, rumo a Sena Madureira e dai para Manaus, e depois talvez um passeio pela terra natal, ou subindo, rumo às cabeceiras, os altos rios, atrás de novos seringais ainda virgens. Mas quando os tempos mudaram nada mais foi possível, pois o dinheiro desaparecera.

SERINGAL REMANSO – RIO ACRE

ALBUM DO RIO ACRE 1907

Naquele ano de 1910, quando a borracha alcançou o seu preço máximo, na Bolsa de Londres e de Nova Iorque, o movimento da produção estava a todo vapor. Os barcos subiam carregados de um tudo, mercadorias de todos os tipos, das balas de rifle Winchester a creolina, dos artigos de primeira necessidade: feijão torrado e arroz sem casca, para não serem plantados, farinha, xarque, sardinha em lata, corned beef e cachaça, aos de luxo, como vinhos, champagne, batatas, cebolas, azeite, bacalhau, compotas, picles, e desciam abarrotados de passageiros, borracha e castanha. E assim todo dia havia alguém para almoçar ou jantar, no seringal de São Pedro de Icó, para uma conversa amigável com o gerente, um rapaz novo e sabido, vindo do Juruá e que estudara no Nordeste, e as conversas iam se prolongando. Do almoço passava-se ao jantar, acabando em um pernoite, para a saída pela manhã, após o café.

A mata andava alagada de tanta chuva e a caça escasseava, por mais que os cabocos se esforçassem, e até a piracema de mandi já havia subido o rio. Naquele sábado chuvoso eles haviam conseguido pegar apenas uma capivara meiota, aí de uns trinta quilos. O cozinheiro esmerou-se e preparou-a, para o domingo, bem temperada, assada no forno de barro da sede.

Todos comeram muito daquele prato delicioso, mas sobrou bastante para o dia seguinte, e por mais dois ou três dias o assado voltava à mesa, requentado.

Na quinta feira apareceram dois visitantes, e o cozinheiro desdobrou-se em retemperar aqueles restos de capivara, pois só havia carne velha, o xarque, e feijão com arroz. O almoço foi servido. Os de casa se serviam aos bocadinhos, deixando de lado, mas nada comentavam, demonstrando boa educação.

Um dos visitantes, o mais mal-educado, teve a coragem de comentar ao provar o prato:

– Esta capivara está com um pitiú danado.

E todos desataram em uma gargalhada uníssona.

Passaram-se mais de setenta anos, e aqui em casa, já em Manaus, na casa de minha mãe, quando se servia um alimento ou sobremesa, por mais de uma vez, ou que não fosse gostoso principalmente se fossem doces, logo um de nós, lembrava-se dessa antiga história e dizia:

– Isto parece que é uma capivara!

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