Manaus, 27 de julho de 2024

Independência

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Duzentos anos de independência deste país-continente, que a tantos encanta, a muitos atrai e é às vezes tão maltratado, desrespeitado por alguns que aqui nascem e se criam e, mais grave, até por outros que exercem ou disputam cargos públicos de relevância. Impossível não cuidar, no dia final da chamada Semana da Pátria, desse aniversário que se fez festa em vários cantos, com bandeiras, cartazes, hinos, sambas e muita exaltação e descabida excitação político-partidária.

Não ousaria jamais falar da importância de Pedro, o primeiro, de Leopoldina, depois imperatriz, vinda de tão longe para contrair núpcias com um príncipe português, ou de Bonifácio, por exemplo, dentre alguns outros, para não correr o risco de merecer reprimendas de historiadores como Robério, mesmo sendo irmão mais novo, Pedro Lucas Lindoso, Marita, filha de Mário Ypiranga, e tantos que honram os quadros de nosso Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e que muito respeito. Limito-me a louvar todo o chamado trabalho de bastidores que terá conduzido o Regente a enfrentar ordens paternas, vindas de além-mar, para dizer, passando às margens do Ipiranga, em São Paulo, que o Brasil separava-se ali do reino e do jugo português e se fazia nação independente.

Feliz dia 7 de setembro de 1822!

Festejar a Independência, como ato político de extrema relevância para o que hoje se chama de nação brasileira, é de dever de quantos aqui vivem, estudam, ensinam, produzem e contribuem para exigir respeito de outros povos. Não há dúvida, penso. E considero, como otimista que sou, que ali se firmava, no ato simbólico de Pedro, o começo da liberdade.

E se disso trato, obrigo-me ao resgate, por exemplo, de que a declaração legal do fim da escravatura só se deu 66 anos depois. Para aqueles, então, que vieram da África em porões imundos e fétidos de chamados navios negreiros e para seus descendentes, todos negociados como mercadorias postas à venda em armazéns ou em feiras e castigados com maior rigor que irracionais, não houve independência em 1822.

Há quem considere haver sido a bravura de Pedro ato essencial ao que praticou, mais de meio século e uma década após, Isabel, a princesa que firmou a Lei Áurea, aí quando já vigorava, há 17 anos, desde setembro de 1871, a liberdade dos filhos de escravos nascidos no Brasil, por força do que dispôs a chamada Lei do Ventre Livre. E já estávamos sob o império do filho herdeiro do trono, o Segundo, que acabou cedendo a pressões políticas instauradas no Senado e que terminariam por conduzir, 11 anos depois, à criação de novo regime político, em forma de República.

Proclamada a separação, desobedecidas as ordens emanadas do pai rei, Pedro cuidou de convocar, ainda em 1822, Assembleia que se incumbiria de escrever a lei geral da nação que surgia, um documento que pudesse representar o extrato das tendências políticas, dos interesses econômicos, da preservação e da contenção de poderes extraoficiais constituídos. Instalada em março do ano seguinte, foi declarada extinta em novembro de 1823, por insatisfação do Imperador com propostas de limitação de seus poderes, e em 1824 tivemos nossa primeira Constituição, outorgada por Pedro em documento que consagrou princípios liberais dominantes em parte da Europa de então combinados com a manutenção do regime escravocrata.

A Independência, com significado de liberdade, não se fez em 1822 também para as mulheres, mesmo as não negras, proibidas de frequentar escola e, ainda que os republicanos tenham aprovado em 1891 a primeira Constituição do novo regime, ali não se consagrava, como também não fizera a Carta de 1824, que Pedro outorgara, o direito feminino ao voto, o que só veio a acontecer em 1932, por decreto firmado pelo presidente Getúlio Vargas, ao criar a Justiça Eleitoral. Numa palavra: somente 110 anos após o Grito do Ipiranga é que se fez chegar à mulher a Independência, pelo menos no plano político, ainda que de forma acanhada. E isto mesmo que há 41 anos do ato de Getúlio já vivêssemos uma república, que significa que o centro e a origem do poder é o povo.

A Independência, 200 anos depois, ainda não chegou à desejada igualdade entre os que habitam este país continental. Há pouco tempo, escrevi aqui, em gritos de revolta, sobre o assassinato de João Alberto, confundido por seguranças de um supermercado paulista como um ladrão, pelo fato simples de ser negro. O racismo é marca de nossa história, mesmo que muitas tenham sido, e continuem sendo, as lutas pela igualdade.

O Brasil não conhece o Brasil. 150 anos depois de realizado o primeiro Censo, lá nos idos de 1872, este será o primeiro ano em que o órgão público incumbido do recenseamento decenal no país terá agentes seus, de forma sistematizada, tomando anotações e fazendo registros de comunidades indígenas e de quilombolas, aqueles, os primeiros habitantes encontrados por Cabral, esses últimos, descendentes de ancestrais escravos do tempo do Império.

Quando exerci a primeira reitoria de nossa Universidade do Estado do Amazonas tive o privilégio de realizar, sob a coordenação e orientação técnica da inesquecível professora Nazaré Corrêa, projeto que denominamos “Reescrevendo o Futuro”, continuado na reitoria que se seguiu com a doutora Marilene Corrêa de Freitas, e que levou as primeiras letras da alfabetização a 125.000 brasileiros de idade superior a 15 e de até 72 anos, em Manaus e em todos os municípios do Interior, incluindo indígenas e quilombolas. E isso mais de 180 após a declaração feita por Pedro I.

Não falo de Independência para os mais de 14 milhões de brasileiros que, por fracassos sucessivos de modelos econômicos oficiais, não conseguem lugar para exercer o sagrado direito ao trabalho. Também disso não cuido para os que, igualmente vítimas, catam no lixo o que lhes possa diminuir a fome, nem para os que moram nas ruas por decisão que não se inscreve em sua liberdade de escolha, entregues ao desalento, ao desamparo e à incerteza de futuro.

Também não consigo falar de Independência quando sei que nesta terra de Ajuricaba, polo de desenvolvimento econômico da região norte do País, sede da primeira universidade brasileira e da maior universidade multicampi do Brasil, encravada na floresta que dizem ser o pulmão do mundo, aqui milhares de pessoas gritavam em dores incontroláveis, nas ruas, em busca de um leito hospitalar e quando afinal conseguiram, por desocupação decorrente de óbitos, morreram sem conseguir exercer o primaríssimo direito de respirar porque faltou nos hospitais públicos o mais elementar do que se pode exigir de uma casa de saúde: o oxigênio. E isto 198 anos depois do 7 de setembro de 1822. Em pleno século XXI, das grandes conquistas tecnológicas!

Ao dizer isso, dou-me ao silêncio em respeito à dor inextinguível dos que permaneceram neste plano da vida pranteando as vítimas dessa irresponsável, inominável e execrável monstruosidade, para não falar de crime.

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