*Dora Kramer
Preso, exercita a mitologia; livre, vai se ver com a realidade.
Cedo ou tarde Luiz Inácio da Silva terá de sair da situação de restrição de liberdade em que se encontra. O termo “cadeia” não se aplica, está mesmo a léguas de distância das instalações da Polícia Federal onde Lula tem televisão, geladeira, se exercita na esteira, recebe visitas ilustres, dá entrevistas, divulga comunicados de orientação política ao PT, contesta o que acha que deve ser contestado em seus processos, emite julgamento sobre seus julgadores, tem, enfim, regalias de que nenhum outro condenado dispõe até porque é o único ex-presidente da República a viver em semelhante condição.
Em se tratando de Lula, tudo é sempre muito peculiar. Porta-voz do lema “Nunca antes neste país”, é o ineditismo em pessoa, tenha tal conceito o significado que melhor convier ao gosto do freguês. De todos os investigados no esquema de corrupção na Petrobras, foi o único a causar impacto quando alvo de operações de busca por documentos em sua residência e a provocar comoção por ocasião da condução coercitiva para prestar depoimento em processos na Lava-Jato.
Ali se fizeram as previsões mais tenebrosas sobre as possíveis consequências do tratamento dado pela Polícia Federal e pela Justiça ao ex-presidente. Nada aconteceu. De novo se desenhou no horizonte um cenário de perturbação social quando da decretação da prisão após a condenação em segunda instância no caso do apartamento no Guarujá, uma gentil oferenda da empreiteira OAS. Chegou-se a falar em revolta popular em seguida, à luz dos fatos circunscrita às imediações do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e depois ao acampamento no entorno da sede da PF em Curitiba.
Nesse tempo em que o Supremo Tribunal Federal voltou a examinar a questão da prisão após sentença confirmada em segundo grau e de decisões passíveis de anular a condenação no caso do tríplex, voltam à cena as conjecturas. Desta vez sobre o papel a ser exercido por Lula na política, em particular a influência dele nas disputas de 2020 e 2022.
Pesquisa VEJA/FSB, publicada na edição anterior, mostra o ex-presidente como o nome eleitoralmente mais viável entre os antagonistas de Bolsonaro localizados à esquerda. Até aí, nenhuma surpresa. Inclusive porque ele não é o mais forte; é o único nesse campo capaz de competir em boa situação. Algo que para Bolsonaro seria li’ composição dos sonhos numa campanha, para repetir o enfrentamento que o levou à Presidência. Mas a realidade é um tanto diferente do mundo dos números de pesquisas colhidas quando ainda há um volume oceânico de metros cúbicos a passar por baixo da ponte e inúmeros obstáculos a ser superados antes de se considerar de maneira racional Lula como uma força real e objetiva, para além da mitologia.
No aspecto jurídico, o petista continuará inelegível mesmo que saia da sala da PF em decorrência da derrubada da prisão depois da segunda instância. Voltará a ter ficha eleitoral limpa só no caso de uma outra decisão do Supremo vir a anular a sentença de Sergio Moro no processo do apartamento. Ainda assim, o ex-presidente responde a mais oito ações, cujo andamento pode novamente lhe suprimir a liberdade e/ou a elegibilidade. Tantos processos desautorizam maiores otimismos.
Agora, ao universo da política e dos fatos. É nele que Lula terá de transitar depois de libertado. Pois é justamente nesse mundo que ele já não vinha transitando bem havia tempo, muito antes da prisão e desde que se agravou sua situação na Justiça com repercussão na política. O ex-presidente não frequentava – nem falava em – ambiente que não fosse de convertidos ao seu altar do petismo mais exacerbado. Entrevistas só para simpatizantes, e circular em público nem pensar.
De uma pessoa tão importante e querida seria de esperar que andasse por aí a desfrutar a popularidade. No entanto, nunca se viu Lula em restaurantes, cinemas, teatros, aeroportos nem em estádios em jogos de seu amado futebol. Incomparavelmente menos festejado nas pesquisas, Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, vai a todo lugar e fala em toda parte sem restrições desde que deixou a Presidência.
E o discurso do Lula livre, será como disse outro dia o do pacificador? Incongruente com a autoria da dinâmica do “nós contra eles”, cuja consequência tem hoje assento no Palácio do Planalto. Preso, pode exercitar a intransigência típica dos carismáticos. Quando exige absolvição total soa convicto, algo a ser lido como “ele deve ter razão”. Solto, terá de se ver com a realidade, por vezes uma madrasta.
*Jornalista. Artigo na Revista Veja nº 2658, de 30/10/2019.
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