Mergulhar nas águas do rio Negro é como regressar à placenta materna. Os nativos sabem disso há séculos. Eis porque ao longo das margens há tanta gente a banhar-se, o que não é tão natural no Madeira, ou Nhamundá, ou Trombetas, muito menos nas solenes águas barrentas do Amazonas. O rio, é claro, é o Negro. O rio Negro, afluente magno do Rio Mar, que expressa o seu orgulho numa recusa teimosa em ter suas águas misturadas por muitas e muitas milhas náutica correnteza abaixo. É o rio Negro que nasce dos mistérios minerais das cordilheiras guianenses e desliza-se turbilhonando em corredeiras vertiginosas em diagonal ao subcontinente, para confrontar-se com o rio do Rei Salomão (Solimões) e formar o rio máximo Amazonas. Rio de origem de tantos povos, elo de união deste mundo com outras dimensões, o rio Negro é um traço de união geográfico a plasmar culturas. Talvez seja difícil para as psicologias de litoral marítimo, como é a psicologia brasileira, compreender o que significa ser ribeirinho, ser filho dos rios poderosos da Amazônia e crescer numa cultura baseada no ciclo da águas. Esta dificuldade dos litorâneos, provocada pelas vertigens marinheiras, faz com que se busque igualar um rio ao outro, como se tudo fosse a mesma coisa, a mesma correnteza, a mesma água e a mesmice dos rios em seu leito. Mas a capacidade de inventar dos rios é infinita, e somente a observação detalhada é capaz de se dar conta de tanta diversidade.
É por isso que alguns nos se tornam eixos históricos, referenciais da experiência humana: berços civilizatórios. O mar é vasto demais e convida à dispersão, inimiga do processo civilizador. Há, assim, os fulcros civilizatórios do Nilo, do Mississipi, do Rena, do Volga … e no grande planeta dos rio que é a Amazônia, a linha sinuosa do rio Negro em seu testemunho permanente de tantas civilizações que ali se cruzaram, se hostilizaram e se esvaíram no tempo, porque de todos os rios do vale amazônico o Negro é o mais especial, único. Nos tempos heroicos, antes do europeus, suas águas de veludo testemunharam a glória de grandes tuxauas. Nações de milhares de habitantes, com a brava nação Muhra, viviam na boca do rio Negro, dominando as várzeas férteis e os campos de terra firme que se estendem entre a margem esquerda, a campina de Manacapuru até as alagadiças barrancas do Careiro e Cambixe.
Os Muhras, durante séculos foram o senhores daquelas paragens, súditos do reino do encontro das águas. Mais acima, no médio Amazonas, os gentis Baré, os Passé e os famosos Manaú. E no alto rio Negro, após a corredeiras letais, o reino do grande tuxaua Buopé e sua amada Kukuy. Buopé, conquistador arawak, provavelmente da nação Tariana, invadiu os sertões sombrios das fímbrias do escudo guianense, movido pelo amor e espírito de aventura. É a lenda heroica com possíveis fundamentos históricos mais antiga do rio Negro. Além de Buopé, no rio Negro viveu Izí, o grande herói formador e destruidor do matriarcado, assim como a figura trágica de Naruna, a última matriarca. O rio Negro, que no século XIX seria chamado de “País Romântico” pelo cientista Alfred Russel Wallace, já mostrava esta condição exaltada desde os seus primórdios. Mais tarde, com a chegada dos europeus, outras tantas figuras ensandecidas ou iludidas pela febre do El Dorado atravessariam suas águas.
Como o alemão Philip Von Huten, que perambulou nas brenhas brumosas do alto rio Negro, faminto e febril a ouvir fabulosos relatos dos índios sobre luxuriantes cidades perdidas cheias de palácios de ouro e esmeraldas, para morrer decapitado nas mãos dos espanhóis. Ou Sir Walter Raleigh, que ouviria deslumbrado as histórias das guerreiras icamiabas, as Amazonas, as mesmas histórias que seriam repetidas 200 anos depois para o cientista francês Charles Marie de La Condamine, e 300 anos mais tarde para o naturalista Spruce.
Águas mágicas.
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