*João Ubaldo Ribeiro
“É comum que, quando estamos falando mal do Brasil, nos refiramos na terceira pessoa tanto ao país quanto ao seu povo. Dizemos que o brasileiro tem tais ou quais defeitos graves, como se nós não fôssemos brasileiros iguais a quaisquer outros. Em relação aos políticos, agimos quase como se tratasse de marcianos ou de uma espécie diferente da nossa, não de gente aqui nascida e criada, da mesma maneira que nós. Somos observadores e vítimas de fatos com cuja existência não temos nada a ver. Os corruptos são ‘eles’, os que sujam as cidades são ‘eles’, os funcionários relapsos são ‘eles’ – nunca nós.
Paralelamente, nos comprazemos em cultivar a noção de que o povo brasileiro é basicamente muito bom, de índole generosa, honesto, solidário, hospitaleiro, pacífico, cordial, alegre e assim por diante. Artigos, conferências e discursos que envolvam críticas negativas a alguma característica negativa dos brasileiros contêm as sempre uma ressalva de praxe, a de que o povo não pode ser acusado de nada, o povo é bom. Com isso esquecemos que não há povo geneticamente bom ou ruim e que o comportamento e os valores prevalentes em qualquer sociedade se originam em elementos culturais, entendidos estes em seu sentido mais lato.
Há quem faça uso de estatísticas comparativas para mostrar que, em áreas como a segurança, por exemplo, algumas grandes cidades nossas apresentam índices de criminalidade comparáveis com cidades americanas do mesmo porte. Então não estaríamos tão mal assim. Mas não há como fazer uma comparação adequada. O número de infrações e de ocorrências policiais em cidades americanas é muito maior do que seria aqui, porque lá se recorre à polícia com muito mais frequência, relativamente. Aqui, tem gente que não dá queixa nem de carro furtado. Sem falar que as estatísticas geralmente não mostram assaltos organizados e sanguinários realizados desde São Paulo a cidadezinhas do interior do Nordeste, onde parece que está surgindo um cangaço modernizado, com os invasores intimidando a população, explodindo caixas de bancos, pilhando casas comerciais e invadindo fazendas. E existem ainda as vastas áreas onde não há polícia, ou a presença do estado é rarefeita e esporádica. No caso, as estatísticas, porque viciadas na origem, valem bem pouco.
E não somente a violência e a insegurança são maiores entre nós do que geralmente se reconhece. Não está na moda falar em padrões morais e quem se arrisca a mencioná-los é desdenhosamente chamado de moralista. Mas não tem nada de moralista aquele que lembra que o homem é um ser moral. Sem senso moral, o homem é um bicho ou um psicopata. Claro, a nação não perdeu suas referências morais, mas o clima nessa área parece hoje cínico e complacente e não é raro que o apego a algum valor moral seja qualificado como coisa de otário. Recato e pudor parecem ter sumido e o exibicionismo, em mil formas contemporâneas, se manifesta em toda parte. Atos de civilidade, como devolver dinheiro achado, são manchete nos jornais.
Não há órgão público que não seja alvo de acusações ou suspeitas de corrupção, nepotismo, tráfico de influência e outras práticas imorais ou criminosas. O engenho nacional desenvolveu sistemas eletrônicos avançados e organizou equipes de ‘consultores’ para fraudar concursos e exames. Dia sim, dia não, noticiam-se desvios de verbas astronômicos, obras públicas caindo aos pedaços antes de serem concluídas e toda espécie de falcatrua. Neste instante mesmo, centenas ou milhares de policiais, pelo país afora, estão embolsando o ‘agrado’ que lhes dão os motoristas para evitar uma multa. Também todos os dias, centenas de milhares de pessoas, ou até milhões, pagam meia-entrada com carteiras de estudante falsificadas. O ‘por fora’ é rotineiramente cobrado, em serviços que ou deveriam ser gratuitos ou fáceis de obter. Vivemos imersos num mar de pequenas delinquências cotidianas que já notamos, ou não achamos que fazem parte natural e inevitável da vida.
O desprezo pela lei e pela moral, a não ser nos raros casos em que a sanção chega com prontidão e eficácia, é a regra entre nós. E essa situação é piorada pela existência das conhecidas leis que pegam, ou ainda, de leis meio disparatadas, que ninguém acredita que serão observadas com rigor. Por exemplo, há quem sustente que, se o sujeito for pegado por um fiscal do Ibama, matando um caititu no mato, é melhor matar o fiscal do que reconhecer o assassinato do caititu. Depois de matar o fiscal, o caçador foge do flagrante, apresenta-se depois à polícia, é réu primário com domicílio conhecido, responde o processo em liberdade e pega aí seus dois aninhos, talvez em regime semiaberto. Já a morte do caititu seria crime inafiançável, cana dura imediata e implacável.
As estatísticas brasileiras de mortes e ferimentos em acidentes de trânsito são um escândalo, qualquer que seja o critério usado para avaliá-las. Todo trânsito brasileiro é um escândalo, nas cidades e nas estradas. Quem passa algum tempo fora do Brasil tem que reavivar seus reflexos, para atravessar ruas. Os motoristas brasileiros se comportam como se o fato de um pedestre atravessar com o sinal fechado para ele lhes desse o direito de atropelá-lo. Todos os pedestres passam de vez em quando pela experiência de atravessar a rua bem antes da passagem de um carro e ver o motorista acelerar na sua direção, como se mirasse nele. Nas estradas, as manobras arriscadas, como ultrapassagens em pontos onde há sinalização proibindo-os, são rotineiras, assim como o uso do acostamento como pista e a violação contumaz dos limites de velocidade. E as pesquisas revelam também que a maior parte dos acidentes é resultado de imprudência e má conduta ao volante, desprezo pelas leis e normas técnicas.
Decifrar as causas desse comportamento equivale, de certa forma, a decifrar o Brasil, tarefa jamais completada por ninguém. As causas são múltiplas, controvertidas e complicadas, o que torna muito difícil até mesmo identificá-las corretamente. Por essa razão, assim como fazem os médicos, quando não conseguem um diagnóstico preciso ou não conhecem com exatidão a causa de uma doença, o tratamento sintomático é o único caminho. Não sabemos bem porque somos desordeiros, mas sabemos que somos. E estamos condenados a continuar sendo, enquanto não levarmos a sério o desrespeito à lei e mantivermos uma relação afetiva com a malandragem, a esperteza marota e a frouxidão de princípios.”
*Escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Artigo inserido na Revista Veja, nº 2333, de 07/08/2013..
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