A compreensão do programa ZFM, seus meandros e paradoxos, não é algo muito palatável de digerir. E para defendê-la, é preciso, ainda, muito debate e mais estudos. São 56 anos de resistência e insistência para sobreviver às incompreensões, desinformação e maledicências. Nessa entrevista, o deputado Saullo Vianna, marinheiro de primeira viagem no parlamento federal, mostra que, em pouco tempo, já compôs sua narrativa de luta. E o que é mais instigante, está navegando em pleno agito de uma reforma fiscal, um sonho de simplificação tributária do contribuinte brasileiro e um pesadelo para a economia da Zona Franca de Manaus. Vamos conferir a prosa.
Brasil Amazônia Agora – Você tem demonstrado indisfarçável confiança dos compromissos do atual governo com a manutenção da ZFM. Ou você confia no modo curupira, ou seja, com os pés atrás?
Saullo Vianna – Tenho razões para acreditar que o governo federal não pretende prejudicar a Zona Franca de Manaus no âmbito da Reforma Tributária. Primeiro, na campanha, o então candidato Lula, hoje presidente, deixou expresso esse compromisso quando esteve do Amazonas. E, como membro do Grupo de Trabalho que se debruça sobre a proposta de Reforma Tributária, reunimos com o Secretário Extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, que nos pediu 30 dias para trazer um texto que não comprometa a competitividade da ZFM.
Antes disso, o secretário ouviu não somente a nossa bancada como os técnicos do Governo do Amazonas. Por fim, na ida a Manaus, o vice-presidente e ministro da Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin fez acenos muito claros ao presidir a reunião do CAS – Conselho de Administração da Suframa, e reafirmar que 70% do PIB- Produto Interno Bruto – do Amazonas advém das indústrias da Zona Franca e que por isso deve ser mantida a todo custo. Ele demonstrou que quer se aprofundar mais no assunto.
Geraldo Alckmin, vice-presidente da República, em reunião do CAS, na Suframa
Então, logo descobrirá que a Zona Franca de Manaus serve ao Amazonas e ao Brasil. Ainda não temos clareza do texto que virá, mas a nossa bancada seguirá vigilante e proativa, acompanhando todos os movimentos para não sermos surpreendidos para que saiamos vitoriosos nessa batalha.
BAA – Você tem falado que é importante assegurar a manutenção do programa ZFM. E na sua proposta, está incluída a diversificação expansão do programa. Em qual direção você está propondo em termos de matriz econômica?
SV – Nossa proposta, já explicitada ao governo federal e aos integrantes do Grupo de Trabalho que analisa a Reforma Tributária, é manter o nosso atual parque industrial competitivo e seus 500 mil empregos diretos e indiretos.
E por outro lado, receber incentivos para a diversificação da nossa matriz econômica, reduzindo nossa dependência à Zona Franca de Manaus, mas agregando novas atividades ligadas às nossas potencialidades: como a economia verde, a comercialização do crédito de carbono, a indústria de software, a mineração sustentável e a exploração de novas bacias de gás como novas alternativas econômicas e que terão grande potencial.
foto: Diego Baravelli
Na direção da bioeconomia, o ministro Alckmin disse que é uma questão de, no máximo 20 dias, que seja publicado o decreto para, finalmente, se definir a personalidade jurídica e dar pleno funcionamento ao nosso CBA – Centro de Biotecnologia da Amazônia. Mas que fique claro: investir na diversificação da nossa economia é importante, desde que isso não comprometa nosso pujante Polo Industrial de Manaus e que não percamos o que já conquistamos a duras penas.
BAA – Somos uma bancada parlamentar historicamente aguerrida, porém reduzida. No seu programa político, a mobilização da bancada parlamentar da Amazônia é uma façanha viável? O que você planeja a respeito?
SV – Temos de, em primeiro lugar, nos unir como bancada do Amazonas no Congresso e, como somos apenas 11 num total de 594 parlamentares, fazermos os movimentos necessários para somarmos mais forças não só na Amazônia como de outras regiões como o Nordeste. Isso além do empresariado, das classes política e classe trabalhadora, por exemplo. Quanto mais poder de pressão, melhor para os nossos interesses. Enquanto isso, os técnicos da Fazenda e do Planejamento do governo do estado estão apresentando suas sugestões e alternativas que possam mitigar eventuais perdas.
Outro grande legado da Zona Franca é a sua contrapartida ambiental, o que faz do nosso Amazonas o estado mais conservado do planeta, com 97% da cobertura florestal intacta. Isso porque os homens e mulheres do nosso estado não avançaram sobre o meio ambiente por conta da atividade industrial. Temos de explorar mais esse legado, que pode encontrar defensores dentro e fora do nosso país.
foto: Gisele Alfaia
BAA – Temos 11 municípios entre os 50 piores e de IDH do país. E estamos entre os oito maiores contribuintes da Receita. Bora virar esse jogo?
SV – Bora. É nesse quesito em especial, de desequilíbrio fiscal e federativo, que entendemos que a Reforma Tributária poderá dar seus melhores frutos. Estamos buscando um texto que diminua estas injustiças e o imenso fosso social que separa alguns entes subnacionais. Ou seja, têm muitos estados e municípios contribuindo pouco e ficando com as fatias maiores, enquanto muitos, como o Amazonas, que mais arrecadam para a União, têm de viver de pires na mão.
Nossa expectativa é de que, com as novas matrizes econômicas propostas – a bioeconomia, o gás, o turismo e o mercado de carbono, com base nos recursos da nossa floresta, o Amazonas, que ainda tem sua economia muito centralizada na capital, vire esse jogo e produza um impacto econômico significativo no IDH dos municípios do nosso interior, cuja população também tem direito ao trabalho, à renda e a ter sua cidadania efetivamente respeitada.
Saullo Vianna foi eleito deputado
federal, pelo União Brasil. Além do GT da
Reforma Tributária, faz parte
das comissões de Finanças e Tributação e
Comissão da Indústria e Comercio.
II
BIC Amazônia 50 anos, as lições da cultura e da floresta
“Há 50 anos, nossos precursores sempre encaravam como um desafio espinhoso e, ao mesmo tempo, delicioso empreender na Amazônia. Aprendemos com eles, a assimilar as lições de viver aqui, ajustar a cultura do empreendedorismo para ajudar a reduzir as acirradas diferenças entre o Norte e o Sul do Brasil, respirar a atmosfera florestal envolvente e transpirar sentimentos comprometidos com sua proteção.”
Entrevista com Jean Marc Hamon, Diretor BIC Amazônia, Conselheiro do CIEAM
“Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu moverei o mundo”. Em que medida esta frase de Arquimedes pode nos ajudar a compreender a história da BIC no mundo e na Amazônia?
Jean Marc – Refletindo sobre a trajetória da empresa a partir da Europa, e há 50 anos na Amazônia, a alavanca da BIC, sem sombra de dúvidas, é a cultura da empresa, seus fundamentos éticos, expressos em seus valores, objetivos e missão. Marcel Bich, nosso fundador, era movido por uma cultura muito forte de empreendedorismo e, ao mesmo tempo, de simplicidade, um valor determinante que se mantém em nossos dias. O empreendedorismo para poder revolucionar a escrita e a simplicidade para fabricar produtos singelos, como uma caneta acessível a uma infinidade de pessoas. A simplicidade desse produto, com um valor que pudesse ser alcançado por uma quantidade enorme de pessoas, alavancou a empresa.
Um objeto, que antes era cercado de luxo, a um custo que poucos podiam acessar, se universalizou. Antes da caneta BIC, só havia a caneta tinteiro, ou aquela que usava pena de aves nobres, molhada na tinta para escrever. Depois, vieram aquelas com penas de aço acessíveis a poucas pessoas. Quando a empresa lançou a caneta BIC, em 1950, foi um alvoroço a mostrar seus impactos de imediato.
Primeiramente nas vendas de muitos milhões, depois bilhões, de unidades. Um artefato simples que trouxe consigo muita energia e engenhosidade. E esta pequena e imensurável alavanca, na prática, moveu uma cultura empreendedora, em forma do ponto de apoio representado pelo trabalho das pessoas. E como dizia o poeta Virgílio, antes da Era Cristã, Omnia vincit labor, O trabalho vence tudo. E o resultado logo foi-se espalhando pelo mundo afora.
Os valores originais dessa cultura foram facilmente assimilados pelos colaboradores na ocasião: a Ética, a Simplicidade, o Trabalho em Equipe e a Engenhosidade. E tudo isso, permeado pelo cultivo permanente do espírito de confiança. A caneta BIC foi lançada em 1950 e, seis anos depois, já estava no Brasil e na maioria dos países da Europa e no Norte da África. Em 10 anos, a empresa já operava em todos os continentes. E nessa época, não havia internet, a comunicação era precária. Mesmo assim, com alguns telefonemas, Marcel Bich achava as pessoas que se identificavam com os valores de sua cultura.
Atentas aos imperativos competitivos envolvendo questões sociais e climáticas, as empresas passam a adotar a metodologia ESG. Quais as medidas tomadas pela BIC, empresa que atua na Amazônia há 50 anos, para assimilar os conceitos da ESG?
Jean Marc – O conceito da ESG, adotado pela BIC Amazônia tem uma história de aprimoramento e qualificação de governança corporativa. Começou com a implantação da ISO 9000, exigida pela Suframa, órgão que gerencia incentivos fiscais como instrumento de desenvolvimento regional. Todos precisavam de certificação da qualidade, que priorizou os mecanismos da gestão e qualificação de nossa indústria. Os padrões que vieram em seguida serviram para apontar as vantagens de termos boas auditorias, pessoas qualificadas que vem aferir nosso desempenho, seus avanços e benefícios.
Em seguida foi implementada a ISO 14000, focada no meio ambiente e nas melhorias da redução do consumo de água e energia, resíduos e todos os controles para não agredir os parâmetros ambientais. Na sequência, veio a ISO 18000, priorizando segurança e saúde na empresa. e hoje estamos vivenciando os avanços da ISO 45000, com a revisão da fábrica inteira, incluindo as máquinas. Então, podemos dizer que, aos 50 anos, de acordo com relatos dos auditores externos, estamos certificados e homologados.
E isso significa que estamos no melhor nível brasileiro e mundial de performance empresarial. Foi também implementada a SA 8000, uma certificação mundial da responsabilidade social, ou seja, estamos trabalhando rigorosamente dentro da Lei e dos contratos. Sempre atentos ao respeito mútuo, combate à discriminação de qualquer natureza, ou de abuso em quaisquer relacionamentos do cotidiano. Temos canal aberto aqui e em todas as fábricas do mundo, onde as pessoas podem reclamar de forma anônima.
Além disso temos o compromisso de levar esse conceito para os fornecedores, com quem fazemos treinamentos uma vez por ano. Todo esse conjunto de ações se insere na metodologia ESG, pois precedem sua adoção. E a BIC Amazônia já está com todas essas normas implementadas e num alto grau de maturidade. Ou seja, estamos trabalhando para ser uma referência corporativa da Amazônia para o país.
No detalhamento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, o Acordo de Paris refere-se à Amazônia como parte do problema ou solução da gestão climática. Como sua empresa interpreta e conduz essa equação?
Jean Marc – Sobre a questão do Acordo de Paris e suas considerações que incluem a proteção da Amazônia, apenas confirmam a importância deste bioma, com a proteção da floresta e das pessoas que aqui vivem. A BIC, através dos seus executivos a nível mundial, tem uma visão genérica da Amazônia, uma visão do que é divulgado pela imprensa, dos relatórios de órgãos. É uma visão externa. Para a BIC Amazônia, o diferencial em relação às outras corporações mundiais, é que nós assimilamos a visão das pessoas que trabalham conosco na fábrica.
O que nos permite dizer que a solução para a Amazônia passa pelos amazônidas, suas expectativas, necessidades e visão de mundo. Portanto, não existe uma solução para Amazônia sem ter uma solução para homens e mulheres que vivem aqui. É algo muito mais complexo do que dar dinheiro para algumas ONGs que, muitas vezes, não sabemos direito o que estão fazendo. E sempre me refiro neste debate ao papel do Polo Industrial de Manaus, embora não seja um especialista no assunto.
A ZFM é uma solução proveitosa para as pessoas da região. É uma possibilidade de desenvolver sem agredir o meio ambiente. Se não fosse o radicalismo de alguns ambientalistas da intocabilidade, poderíamos aproveitar alguns recursos de modo sustentável, e isso não iria destruir a Amazônia. Alguns recursos minerais, a partir do gás natural e outras jazidas, por exemplo. Os insumos da biologia molecular são, com certeza, as respostas que a humanidade procura em termos de fármacos, dermocosméticos e alimento funcional, os suplementos. É importante enfatizar que é sempre muito delicado opinar sobre a Amazônia.
E temos certeza de que as fábricas têm, indiretamente, um papel positivo na proteção da floresta, oferecendo emprego e oportunidades para evitar a economia predatória. Afinal, a indústria da ZFM gera muita riqueza, o que permitiria robustos investimentos para fornecer uma saída econômica que não seja o desmatamento.
Entre os valores e missões de uma empresa que produz artigos escolares, a educação tem destaque como fator de promoção do tecido social e suas implicações na ordem econômica. Qual sua opinião a respeito?
Jean Marc –De fato, a BIC é uma empresa que se consolidou a partir de produtos destinados, particularmente, ao ensino. Antes da BIC, escrever era um privilégio. E nossa empresa colocou no mercado um produto escolar que deu acesso à escrita a milhões e bilhões de pessoas. Diversificamos, com o tempo, nossa linha de produtos, mas não abrimos mão de criar uma Fundação integralmente voltada para a Educação. Com ela, selecionamos criteriosamente e financiamos projetos de extrema relevância educacional, sempre priorizando a ética, o respeito, a simplicidade e o trabalho em equipe, com destaque especial para a criatividade. Esclarecemos que a ênfase no desenvolvimento da criatividade das crianças não abre mão das habilidades fundamentais, como ler, escrever e fazer contas.
Mas a criatividade será a ferramenta decisiva num mundo em que as máquinas são e serão, cada vez mais, encarregadas das atividades repetitivas do cotidiano. A economia será, pois, obrigatoriamente criativa. Um exemplo recente é o ChatGPT 4.0, capaz de escrever como um bom. produtor de conteúdos, resolver problemas, corrigir, sugerir, e até fazer poesias. Basta perguntar qualquer coisa que a Inteligência Artificial responde, sejam perguntas simples ou complexas. E então, o que realmente vai sobrar aos seres humanos, a não ser essa dimensão criativa, que somos capazes de cultivar e expandir. Por isso, a Fundação BIC está financiando projetos com o objetivo de alcançar 250 milhões de crianças até 2050.
De diversas formas, as ações voltadas para desenvolver a criatividade serão financiadas e apoiadas pela Fundação. E nós já estamos mapeando bons projetos para selecionar os melhores, aqui na Amazônia. E educação foi motivo especial de celebração de nosso Cinquentenário na ZFM. Nos festejos, anunciamos que cada fábrica vai dispor de um valor em dinheiro, para ajudar a escola da comunidade e seu entorno. Municípios do interior, como Itacoatiara, Manacapuru, Presidente Figueiredo, por exemplo, vão poder apresentar projetos destinados exclusivamente para educação. Além do valor, entraremos com voluntários da empresa, comprometidos com o desafio educacional.
foto: Google Maps
E o item básico é o da manutenção. Isso significa deixar o espaço escolar do melhor jeito que possa impulsionar o espírito criativo das crianças. Vamos iniciar com R$200 mil/ano, que podem beneficiar um ou mais projetos, de acordo com as prioridades. Com esses recursos iniciais, já podemos prever muita criatividade como prenúncio de novas oportunidades em múltiplas direções.
Passado os 50 anos de implantação da BIC na Amazônia, que lições e descobertas foram assinaladas nesta caminhada empreendedora no coração da floresta?
Jean Marc – Esta questão me permite voltar ao tema do empreendedorismo. A importância de uma cultura que seja bem estruturada no alicerce da ética, da simplicidade, do respeito mútuo e no trabalho em equipe, premissas da confiança como valor sagrado, como conduziu o fundador da empresa Marcel Bich. Na celebração dos 50 anos da BIC Amazônia, fizemos questão de recuperar/destacar/propagar este lado empreendedor.
Por isso, lembramos a figura do Dr. Douglas Ribas, um advogado, que era consultor jurídico da BIC em São Paulo, nos anos 70, a quem coube a espinhosa missão de explicar o funcionamento da ZFM em Manaus, assim como o intrincado sistema tributária para os executivos da BIC na França.
Hoje, tenho certeza, que valeu muito mais toda confiança que eles tinham no Dr. Douglas, do que as explicações que deu aos executivos. Então, no final das contas, o valor da confiança que ele desfrutava diante da empresa, acabou definindo a vinda para Manaus. A confiança, portanto, mais uma vez, influenciou fortemente o empreendedorismo corporativo. Mais tarde, quando começamos a produção de isqueiros, os relatos da época de instalação de uma fábrica no coração da maior floresta tropical do planeta, eram compartilhados como uma verdadeira epopeia, uma aventura inesquecível.
Estes relatos influenciaram minha decisão de mudar de vez para Manaus, contagiada pela poderosa energia do empreendedorismo e da confiança que paira no ambiente BIC desde sempre. Há 50 anos, nossos precursores encaravam como um desafio delicioso empreender na Amazônia. Aprendemos, assim, a assimilar as lições de viver aqui, ajustar a cultura do empreendedorismo e ajudar a reduzir as acirradas diferenças entre o Norte e o Sul do Brasil, respirar a atmosfera florestal envolvente e transpirar sentimentos comprometidos com sua proteção.
Acredito que, se fôssemos a outro lugar, com um sistema burocrático e controlador, como tem muitos por aí, nada disso teria acontecido. O empreendedorismo se transformou em coragem e gerou aprendizados e conquistas preciosas, cinquenta anos depois. Muito obrigado, Amazônia e Amazônidas!
Jean Marc Hamon é diretor industrial da BIC Amazônia, Universidade Saint Brieuc
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