*Adriana Dias Lopes
A psicanalista Paula Fontenelle fala do suicídio do pai e como a morte dele transformou a sua vida por completo.
Em 10 de janeiro de 2005, recebi o telefonema mais difícil de minha vida. Ainda sonolenta, acordei com minha irmã Renata, que, assustada e chorando muito, disse: “Ele se matou, Paula! Papai está morto!”. Sentada na cama, olhando para o telefone, tentei processar aquelas palavras. Pouco me recordo do que aconteceu naquele dia ou nos que vieram a seguir. O choque faz isso, apaga dores irreconciliáveis. Até então, suicídio, para mim, era um conceito distante, pesado e, acima de tudo, desconhecido. A morte dó meu pai o trouxe para perto, redirecionando o caminho que até ali eu havia traçado. Daquele momento em diante, mergulhei numa busca por respostas, algo que pudesse apagar a interrogação incômoda que gritava dentro de mim. No fundo, o que eu queria era entender o tamanho da dor de meu pai.
Olhando de fora, Fontenelle – como ele era conhecido- não se encaixava no perfil de alguém capaz de tirar a própria vida. Fazia amigos com facilidade. Na minha infância, nossa casa estava sempre cheia e era um paraíso para crianças.
Meu pai era generoso, inteligente, um homem de grandes valores. Mas havia um outro lado que ele não dividia com ninguém e que, por vezes, o levava a um lugar obscuro e amargo. Nesses momentos, para anestesiar a dor, ele bebia. Meu pai era alcoólatra. Até hoje sinto culpa quando digo isso, mas sei da importância de nomear as fragilidades como forma de restringir o poder que elas têm sobre nós.
Esse pedaço de sua história foi mantido em segredo até o dia em que eu entrevistei meu tio. Na época, poucos meses após a morte de meu pai, eu estava pesquisando sobre suicídio e, como parte do livro que começava a escrever, agendei conversas com pessoas que o conheciam intimamente. Durante o papo com meu tio ele falou do meu avô, pai do meu pai – ele também havia sido alcoólatra. O sofrimento contido do meu pai, enfim, se esclareceu. Isso certamente me ajudou a compreender uma peça relevante do quebra-cabeça. O suicídio é sempre multifatorial e cada caso deve ser compreendido de modo particular. No caso do meu pai, enxergo uma sucessão de perdas que culminaram em sua morte. Poucos anos antes, meu irmão mais novo havia morrido de forma trágica. Aí veio o divórcio de meus pais, após mais de três décadas de casamento. Ele tinha aberto um negócio, que não ia bem, e enfrentava graves problemas financeiros, Depois de uma conversa que tivemos, prometeu que consultaria um psiquiatra. Foi diagnosticado com depressão, mas nunca se tratou.
Dois dias antes de tirar a própria vida, meu pai me escreveu uma carta e a colocou no Correio. Nela havia detalhes do que fazer em relação ao inventário. Só a recebi quando já era tarde. Este é um dos sinais dos suicidas: eles organizam aspectos práticos. Desmoronei ao ler suas últimas palavras. No mesmo ano, fui diagnosticada com depressão, mas, ao contrário dele, eu me tratei. Em 2008, publiquei o livro Suicídio: o Futuro Interrompido, com o objetivo de ajudar a combater o estigma que acompanha esse tema. Recentemente, formei-me em psicanálise e estou finalizando o mestrado com foco em tratamento de trauma e prevenção à morte voluntária. O suicídio do meu pai redirecionou a minha vida. Para a maioria das pessoas, trata-se de uma realidade remota que só acontece com os outros. Muitas vezes, basta olhar para o lado com um pouco mais de atenção para enxergar alguém que precisa ser notado. Não posso trazer meu pai de volta, mas quero continuar a estender a mão àqueles que estão vulneráveis ao suicídio e aos que enfrentam o luto calados. A segunda edição do meu livro será em breve publicada nos Estados Unidos. Também mantenho um site, o www.prevencaosuicidio.blog.br, e, neste mês, temos o Setembro Amarelo, uma importante campanha de prevenção. O suicídio precisa ser debatido. No silêncio, ele cresce.
*Jornalista. Entrevista com a Psicanalista Paula Fontenelle na Revista Veja nº 2652, de 18/09/2019.
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