Manaus, 18 de junho de 2025

Paladares ancestrais

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A cozinha amazônica é a mais original vertente da Culinária Brasileira, é a contribuição de raiz, com a sua morfologia pré-colombiana e o seu sabor pescado nas profundezas das águas tépidas dos grandes rios, seus condimentos garimpados nas sendas perdidas da grande floresta.

É uma cozinha que evoca paladares ancestrais, quando o mundo era jovem e os povos do grande vale construíam suas civilizações sem a presença dos brancos. Um naco de tucunaré, uma garfada de paxicá de peixe boi ou um bocado de sarapatel de tartaruga, remetem à velha morada dos deuses dessas terras do sem fim. É claro que hoje os nossos deuses selvagens foram banidos da terra, o status ontológico da Amazônia passou a ser traduzido pelo potencial de energia elétrica de uma cachoeira ou viabilidade econômica de uma mina de manganês. Tartarugas e peixe boi estão em processo de extinção, graças a esta ideologia míope de progresso que nos chega truncada e mal assimilada por tecnocratas de pouca imaginação e políticos conformistas.

Mas a cozinha amazônica é a mais patente prova da superioridade cultural das civilizações indígenas na Amazônia. Durante mais de duzentos anos, entre 1530 a 1790, os europeus constataram a sua própria inferioridade. Para sobreviver tiveram de se adaptar aos costumes da terra, despirem seus trajes de veludo e suas armaduras pesadas e reencontrarem as roupagens da primeira criação. É possível que esta superioridade cultural tenha arranhado seriamente o narcisismo europeu, porque os índios sempre representaram uma presença inquietante. Para os primeiros colonos portugueses eles eram os senhores absolutos da região. Eram os índios representantes de uma humanidade degradada, os únicos que haviam conquistado o status de uma cultura que falava em todos os níveis a linguagem da Amazônia. Apropriando-se dos métodos indígenas os colonos, ao mesmo tempo que fundaram as bases sociais da futura Amazônia, estabeleceram um conflito. E este conflito preside ainda hoje a cultura da região. Os índios, no entanto, nunca colocaram em risco a estabilidade do meio ambiente amazônico, enquanto a nossa cultura, que se considera superior, nem precisamos comentar as inúmeras agressões. Em 1665, o padre Antônio Vieira visita Belém. Escreve algumas das mais vivas crônicas sobre os costumes e a rotina de uma vila colonial na Amazônia. Naqueles meados do século XVII, Belém é uma imunda e sonolenta vila arruada desordenadamente em torno do forte do Presépio. Nada naquele aglomerado de taperas excita à premonição de que no futuro aquela cidade seria escolhida como capital de uma administração colonial e em 1900 uma das mais lindas e trepidantes metrópoles da América do Sul. O que o padre Antônio Vieira vê consternado é um forte militar meio em ruínas, com sua guarnição vestindo fardas imundas e esfarrapadas, de soldado alquebrados e mergulhados na mais completa indisciplina e desmazelo em seus próprios tratos pessoais. Os colonos, estes para Vieira já haviam atravessado os mais inimagináveis limites da degradação. Para escândalo de Vieira, roupas eles somente vestiam quando precisavam sair à rua para alguma demanda importante. Assim mesmo, ataviavam-se de forma esdrúxula, esquecendo às vezes a camisa ou os calções, como se já não lembrassem mais o que era se vestir condignamente. Ao entrar nas casas de Belém, o padre Vieira não parava de recuar horrorizado frente ao que via. Ali os colonos portugueses pareciam desbotados tapuias, estirados nus nas confortáveis redes de cipó tucum, atendidos por perfumadas cunhãs que lhes ministravam elaborados cafunés. A mesa belenense de 1665 era puramente indígena, um festim permanente de peixes moqueados caças e frutas da estação. Embora ainda não fosse moda, tomar o vinho do açaí era diário e muito apreciado.

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