Manaus, 21 de novembro de 2024

Por que estudamos literatura?

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*Zemaria Pinto

Continuação ….

Psicanálise no inferno ou o Amazonas também é modernista

No dia 7 de setembro de 1922, comemorando o centenário da tal independência, o Diário Oficial do Amazonas publicava um longo poema narrativo, com 978 versos decassílabos e esquema rímico irregular, dividido em nove capítulos, que mostram a jornada do cearense Militão, uma alegoria dos milhares de nordestinos que eram recrutados para suprir a mão de obra nativa, insuficiente para atender à demanda dos seringais. O autor, Octavio Sarmento, que morreria quatro anos depois, só teria um livro publicado 81 anos depois de sua morte, em 2007: A Uiara & outros poemas, organizado por este locutor que vos fala.

O porquê do esquecimento? A saga de um nordestino pobre, que vivencia a experiência da morte cara a cara e depois enlouquece de paixão e de desejo, não era, definitivamente, para os padrões da época, um tema nobre. Embora, por vezes, exagerando nas cores, A Uiara é um poema sóbrio, antecipador de toda a literatura que viria na sequência. Com toques da nascente psicanálise, Sarmento mescla à paisagem – ora infernal, ora edênica – aspectos diversos da mitologia amazônica, construindo uma alegoria do que fora, na virada do século, a economia baseada no produto da seringueira. Não resisto ao paralelo com Juca Mulato, o poema de Menotti Del Picchia que, em 1917, retoma a temática regionalista, esquecida desde os românticos, e antecipa o Modernismo, trazendo a vida do homem comum para a poesia.

 

A Grécia nunca foi aqui

A Uiara é a fundação do Modernismo no Amazonas. Mas, isso fica entre a gente. A crença geral é de que esse marco é o insípido Poemas amazônicos, de Pereira da Silva, uma miscelânea romântico-

parnasiano-simbolista, vazada, às vezes, em versos livres e brancos, o que dá a falsa impressão de modernismo. Não se lhe nega qualidade poética, mas falta-lhe uma conexão com a própria contemporaneidade: amazônicos, seus poemas estão ligados a um panteísmo helênico, que soa falso e ingênuo, quase desonesto. À época com 35 anos, poderia ser um aprendizado, mas, o poeta desistiu das musas e foi ser deputado federal, onde, aliás, se deu muito bem.

 

Revolução frustrada

Um autor que merece destaque no nosso incipiente modernismo – não pela sua poesia ou sua ficção, certamente – é Álvaro Maia. Seu ensaio Canção de fé e esperança, de 1923, mistura política e poesia com raro equilíbrio. Articulado em três níveis distintos – passado, 1823, emancipação, frustrada, do Pará; presente, 1923, em plena agitação tenentista; e futuro, 2023 –, o jovem político e poeta, inconformado com a depressão econômica que fazia definhar o Amazonas, instigava os seus pares, pois só a eles cabia a construção do futuro. Álvaro Maia prega a revolução e até mesmo o separatismo, ao pensar no Amazonas do futuro, exatamente o momento que vivemos agora. Será?

 

A flor-mulher e o mandacaru

Violeta Branca, aos 20 anos, publica Ritmos de inquieta alegria, um livro libertário de uma mulher madura, lírico sem ser sentimental, sensual sem ser vulgar. Violeta é um “luminoso poema de mocidade e sol”. Trabalhando diversos aspectos do imaginário amazônico, inclusive a paisagem, o espaço disponível é pequeno para dar a dimensão da poesia dessa menina. Tratem de lê-la.

E para fechar o Modernismo no Amazonas, apresento-lhes as revistas de Clóvis Barbosa, um modernista a ser resgatado: Redempção, Equador e A selva. Todo mundo já ouviu falar, mas ninguém viu. Eu elejo, proclamo e desafio: o paraibano Clóvis Barbosa é um caso a ser investigado pelos pesquisadores da literatura amazonense. Parem de inventar moda e procurem o que realmente interessa. Entre os seus colaboradores, estavam Álvaro Maia, Pereira da Silva, Violeta Branca, Nunes Pereira, Dalcídio Jurandir e Abguar Bastos – e também Mário de Andrade, Jorge Amado, Tristão de Athayde e Raul Bopp, entre muitos outros.

 

Clube da Madrugada: vida inteligente no entorno do Teatro Amazonas

O movimento que convencionamos chamar de Clube da Madrugada jamais foi um movimento estético no sentido que o léxico dá a palavra, como “padrão ou corrente de pensamento buscando a evolução de uma ou mais áreas do conhecimento humano”. Antes, o Clube da Madrugada começou como um movimento no sentido de “conjunto de ações visando, explicitamente, mudanças políticas e sociais”. A partir desta acepção, afirmamos que o Clube da Madrugada começou como um movimento político, que só muito depois enveredou pela trilha estética, mesmo assim, de forma desorganizada, sem se constituir em uma trilha uniforme, mas se multifacetando em vários caminhos. Aliás, o Clube nasce de uma contradição: sem perspectivas de futuro, aos jovens amazonenses – na expressão cunhada pelo sábio Djalma Batista – só restava o “êxodo anual”, a senha para buscar outras formas de vida fora do entorno do Teatro Amazonas. O Clube da Madrugada amadurece durante cinco anos, até o ato formal, que de formal não teve nada, da sua fundação, pelos que não aderiram ao êxodo, em 1954. Até nisso eles quiseram ser modernistas. Mas, não eram. Do ponto de vista estético, a literatura do Clube está ligada à geração de 1945, formalista e antimodernista – embora não assumam isso, porque era muito antipático ser antimodernista. Aliás, o é até hoje.

Dessa geração, era o jovem poeta Thiago de Mello, que, a rigor, não era do Clube. Por ter aderido ao êxodo anual, fora para o Rio de Janeiro no início doas anos 1940, com o intuito de estudar medicina, e menos de uma década e meia depois já era considerado uma das maiores vozes da poesia brasileira.

 

Os ceifadores precisam aprender a separar o joio do trigo

As três gerações que construíram a história do Clube da Madrugada – com ênfase na literatura e nas artes plásticas – constituem um fenômeno a ser explicado, partindo do princípio científico de que milagres são apenas improbabilidades estatísticas. Mas, outras gerações vieram à luz, como não poderia deixar de ser, inferiores numericamente, mas de qualidade estética a ombrear com a linha de frente do Clube.

Temo, entretanto, pelo que observo, que o filtro da qualidade não esteja adequado. A novíssima geração de analistas e críticos, da qual vocês fazem parte, tem por obrigação regular esse filtro e não confundir quantidade com qualidade. Um livro é apenas um livro – não um passaporte para uma falsa eternidade – e assim deve ser lido. Cabe a metáfora do evangelista Mateus: no tempo da colheita, é preciso separar o joio do trigo.

 

Deus não joga dados com o universo, mas se jogasse não aboliria o acaso

E já que falamos em Mateus, o evangelista guerrilheiro, na visão de Pasolini, lembro que o sábio cristão Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, distingue três espécies de relação entre literatura e religião: unitiva, adversativa e indiferente.8 À relação unitiva pertence todo o acervo de teologia e de filosofia religiosa, mas também obras de ficção, como A divina comédia, de Dante, o Fausto, de Goethe, e Os Lusíadas, de Camões. À relação adversativa corresponde a vasta produção oposta àquela, em que se combate não só a ideia de religião, mas o conceito de deus ou deuses. Não se trata de apologia demoníaca, mas da compreensão de que o mal é parte da humanidade, e nenhum deus deve interferir para mudar isso. De Lucrécio e Ovídio até Kafka, passando por Rabelais, Voltaire, Baudelaire, Blake e Eça de Queirós, há toda uma literatura em defesa desta tese. O poeta Gregório de Matos divide-se entre as duas espécies: parte de sua obra dedica-se a criticar e até escarnecer da Igreja; outra parte, significativa, é de uma religiosidade contrita e sincera. A relação indiferente reúne a grande maioria do cânone literário universal: são obras que não tomam partido religioso ou se o fazem é apenas como pano de fundo para a ação principal. Shakespeare e Jorge Luis Borges representam bem esse grupo. É o caso também de Jorge Amado – ateu e comunista –, que, em todos os seus livros, sem exceção, trata da religiosidade popular de forma poética e sobretudo respeitosa.

Tristão de Athayde, um crítico feroz da má literatura, identifica ainda, de bônus, as obras ditas “edificantes”, que buscam enquadrar-se na categoria unitiva, em que literatura e religiosidade fundem-se numa só ideia, mas essa intenção frustra-se porque “são obras pseudoliterárias e pseudorreligiosas, embora impregnadas de boas intenções, compostas para colocar a literatura a serviço da religião”. O autor lembra a ferina frase de André Gide: “é com boas intenções que fazemos má literatura.” Hoje, a literatura edificante recebe outro nome: autoajuda – prenhe de boas intenções, porém, má literatura. E mais não direi.

 

O feio e o belo são as duas partes de um todo que é só metade

Se o mal é parte da humanidade, não poderia deixar de ser parte da literatura. Esta é uma bifurcação em que o caminho escolhido não permite retorno – será para toda a vida. A escolha é entre a literatura como um produto do belo, numa direção; e a literatura como um produto da vida, em outra. Mas, atenção: definitivamente, a vida não é bela. Como diria o jovem Victor Hugo, há quase duzentos anos, na vida real e na vida imaginada, “o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz.”9 Se reconhecemos algo como belo é porque conhecemos o feio. É dessa fusão entre o bem e o mal, o belo e o feio, o trágico e o cômico que se faz literatura, desde sempre.

 

O autor deve morrer para que a obra tenha vida

Não há nada mais triste e deprimente que a leitura de uma obra tendo por baliza a biografia do autor. O autor deve morrer na vida da obra. Vamos repetir isso: o autor deverá estar morto para que a obra possa ser considerada viva. O autor é apenas uma representação legal, um nome associado à obra, direitos autorais, essas coisas – mas não é ela. Alguns autores fazem questão de afirmar que escrevem sobre sua vida. A maioria, borgeanamente, mente. Os que falam a verdade não fazem literatura.

Essa questão fica mais clara na poesia. A possível poesia do “eu empírico” (o poeta-autor) não nos interessa: é muita pretensão de um autor achar que sua dor ou alegria individuais têm algum interesse para a humanidade. Por outro lado, a locução “eu lírico”, usada para designar a voz fictícia do poeta, é de uma simplificação atroz, só tendo sentido na análise de poemas isolados, pois, num conjunto, qualquer conjunto de poemas de qualidade de um autor de qualidade, deve prevalecer a diversidade de vozes, a polifonia. Imagine-se uma antologia de um determinado autor, representativa de sua obra ao longo do tempo. Analisá-la sob a perspectiva de um eu lírico é limitar essa análise, pois, com toda certeza, prevalecerá uma multiplicidade de “eus líricos”.

 

A máscara lírica muito além de Mr. Hyde

Analisar poetas a partir da perspectiva da adoção de “máscaras líricas”, me parece a melhor solução para a cacofonia promovida por um “eu lírico” descontrolado. Por exemplo, Augusto dos Anjos: poeta e poesia de alta tensão e densa complexidade, o autor, deliberadamente, assume uma máscara, que é o desdobramento do eu lírico, um outro eu lírico, sobre o qual Dr. Jekyll mantém total controle. Essa “máscara lírica” quebra a conexão autor-eu lírico, assumindo-se como personagem (persona = máscara), se expressando como tal, na sua completude de máscara, sem nenhum vínculo físico com o autor, que presta vassalagem a ela, sem largar os cordames. Fernando Pessoa levaria ao extremo esse processo, na criação de seus principais heterônimos – Caeiro, Campos e Reis.

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8 ATHAYDE, Tristão de. Religião e Literatura. In: Teoria, crítica e história literária.

Seleção: Gilberto Mendonça Teles e Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; Brasília: INL, 1980. p. 117-121.

9 HUGO, Victor. Do grotesco ao sublime. 2. ed. Tradução: Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 26.

Continua na próxima edição…

*Zemaria Pinto tem 27 livros publicados, em gêneros diversos: poesia, teatro, contos adultos, ficção infantojuvenil, teoria literária, didáticos, artigos e ensaios sobre literatura, além de três livros de contos publicados no blog Palavra do Fingidor. Dramaturgo, tem seis peças encenadas e outras tantas inéditas.
Graduado em Economia (1981), é especialista em Literatura Brasileira (1989) e mestre em Estudos Literários (2012). Sempre pela UFAM.É membro da Academia Amazonense de Letras, onde ocupa a cadeira 27, de Tavares Bastos, desde setembro de 2004. Membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, inaugurou, em fevereiro de 2016, a cadeira 59, de Nunes Pereira.

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