Manaus, 21 de maio de 2024

Por que estudamos literatura?

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* Zemaria Pinto

Continuação ….

A máscara expressionista de Augusto dos Anjos

Um bom começo para entender o funcionamento da máscara lírica são os conhecidos “três sonetos ao pai”, de Augusto dos Anjos – na verdade, publicados sempre juntos, mas sob o título genérico de “Sonetos”. O primeiro, com a dedicatória “A meu pai doente”; o segundo, “A meu pai morto”; ambos publicados em jornal seis dias após o falecimento do pai do poeta. Nesses poemas, o eu lírico se funde ao eu empírico, formando uma só voz poemática.

No primeiro poema, de extração simbolista – tendo por paisagem de fundo um campo sem flores, de árvores nuas –, o sofrimento causado pela doença do pai mescla-se ao sofrimento do filho impotente, levando-o a questionar sua fé.

No segundo poema, parnasiano, cessa o sofrimento do pai e o filho resigna-se diante da inevitabilidade da morte. A paisagem de fundo é um “abismo de beleza” sob o “estrelado véu”. Em paz consigo mesmo, o filho reconcilia-se com a fé, nas imagens do cordeiro e do carro de Elias: “Meu Pai nessa hora junto a mim morria / Sem um gemido, assim como um cordeiro!” E fechando o poema: “Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas, / Como Elias, num carro azul de glórias, / Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!”

O terceiro poema foi publicado sete anos após os dois primeiros, quando a linguagem poética de Augusto dos Anjos já tomara um rumo totalmente diferente dos anos iniciais, com a adoção de uma máscara lírica – uma personagem que via o mundo em sua realidade aterrorizante. Não se trata de um sonho ou de uma visão. A descrição que a máscara lírica faz do corpo do pai vai além do mero registro realista: ela se coloca junto a ele, apodrecendo sob a terra, e até o beija: “Podre meu pai! (…) Em seus lábios que os meus lábios osculam…” À parte, entretanto, a paisagem representada pelo corpo do pai em decomposição, duas reflexões perpassam o poema: a certeza da morte, regulada por uma lei biológica que vale tanto para o homem como para as mais desprezíveis formas de vida, parasitárias, que devoram o corpo inerte; e uma declaração de amor ao pai – amor eterno, não fosse a vida efêmera.10

Contra a pequenez provinciana, a máscara lírica de Bacellar

Na lírica amazônica, cito o exemplo de Luiz Bacellar, que usa máscaras líricas de acordo com a forma poemática adotada: soneto, em Quatro movimentos; rondel, no Sol de feira; haicai, no Satori. São três poetas diferentes. No seu primeiro livro, Frauta de barro, o poeta desdobra-se em máscaras diversas. Para impor sua poesia esmagada pela província, a máscara lírica bacellariana faz uma narrativa da pequenez provinciana, a partir da perspectiva de um nobre trovador, que dá ênfase à preparação do recital, para depois cantar – inicialmente, uma poesia diurna, solar, que vai aos poucos impregnando-se de angústia e melancolia. A segunda parte do recital são cantigas diversas, concluindo com os cantares de amigo, que homenageiam outros poetas.

A única certeza é a dúvida

Chegamos ao fim da nossa jornada. Não há clichê mais clichê que esse. Mas, é um porto seguro. Outro clichezinho básico. Evitem. Aliás, não usem nem por brincadeira. A literatura é o anticlichê, o antilugarcomum, a antibanalidade. Sejam literários, não literatos: quem gosta de estereótipos são os estereotipados, que se alimentam da própria banalidade narcísica. E sabe o que mais? O senso crítico é um aprendizado lento. “Achei lindo…” pode ser uma opinião, mas não é crítica. Como crítico, você só tem que saber uma coisa: explicar a sua opinião. E a sua opinião é uma construção de dúvidas, não de certezas. Se a verdade tem dois lados (olha o clichezão aí, gente), duvide de ambos e construa a sua síntese. Isto é dialética. Mas você pode ir mais longe: se a verdade é uma abstração, a única certeza é a dúvida. Alimente-se de dúvidas. Converse com suas dúvidas. Durma com suas dúvidas.

Uma certeza banal: os jovens não leem mais. Outra: os jovens não gostam de escrever. Mais outra: o livro de papel vai desaparecer. Destas três, apenas a terceira é verdadeira: sinto muito informá-los, mas o livro vai desaparecer, sim. E isso é tão certo quanto o fato de que os jovens (e os velhos também) nunca leram e nunca escreveram tanto. Olhe em redor. O que você acha que esse pessoal faz com essa maquininha diabólica nas mãos?

Quanto ao livro, pensem que é apenas um suporte. O livro como nós o conhecemos tem pouco menos de 600 anos, em mais de 3 mil anos de literatura. Não precisamos ficar tristes, sabem por quê? Por que a literatura não vai desaparecer, pelo menos pelos próximos 3 mil anos. Fiquem tranquilos: o emprego de vocês está garantido, especialmente agora que vocês já sabem por que estudamos literatura…

E para terminar, uma reflexão.

Moto-contínuo

Tudo muda, tudo passa,
tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.

Lentamente a História muda,
lentamente muda o Homem,
tão lentamente que às vezes
pensamos que estagnou.
As longas noites da História
passam-se tão lentamente
que nem nos apercebemos
quando o dia, enfim, chegou.

Tudo muda, tudo passa,
tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.
Tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu:
os corpos e os vegetais,
a fé e a necessidade,
a volúpia e a vontade,
o desejo e o desalento.

Tudo o que é vivo apodrece,
o que é líquido evapora,
o sólido se deforma,
o fogo que queima apaga
e o ar, puro ou cinzento,
a cada instante renova-se,
e mesmo o pó se transporta
sob o trabalho dos ventos.

Tudo muda, tudo passa,
tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.
Muito obrigado!

________________________

10 PINTO, Zemaria. A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos. Manaus: Valer, 2012. p. 45-48.

*Zemaria Pinto tem 27 livros publicados, em gêneros diversos: poesia, teatro, contos adultos, ficção infantojuvenil, teoria literária, didáticos, artigos e ensaios sobre literatura, além de três livros de contos publicados no blog Palavra do Fingidor. Dramaturgo, tem seis peças encenadas e outras tantas inéditas.

Graduado em Economia (1981), é especialista em Literatura Brasileira (1989) e mestre em Estudos Literários (2012). Sempre pela UFAM. É membro da Academia Amazonense de Letras, onde ocupa a cadeira 27, de Tavares Bastos, desde setembro de 2004. Membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, inaugurou, em fevereiro de 2016, a cadeira 59, de Nunes Pereira.

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