Manaus, 16 de setembro de 2024

Quadro Negro

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*Francisco Calheiros

Vila da Barra Ano de 1988

Ausência

Ela fazia da pequena sala o lugar mais espaçoso do mundo. Sua mãe deixava-a sempre ali, sobre o velho cana- pé, a brincar com alguns objetos comprados no tumultuado comércio da Avenida Eduardo Ribeiro. Os recursos procediam da profissão de doméstica em uma residência no Bairro da Compensa. Eram somente alguns brinquedos. Na verdade, algumas bonecas que em nada lembravam as do comercial de televisão.

Em uma mesa, alguns livros. O seu preferido era um vade-mécum, que sua mãe esquecia por ali e que tinha o nome de seu pai. Os seus três anos de idade só lhe permitiam folhear aquelas infindáveis páginas. Com o lápis na mão, parecia uma pessoa adulta. Tinha um olhar diferente – um pouco triste – talvez por não ter nenhum amiguinho com o qual pudesse dividir seus momentos de ternura. Jogava as bonecas contra o sofá para depois colocá-las no colo com longas sessões de carinho e de deleite.

Aos sábados sua mãe sempre se ausentava. Era quase uma obrigação. Voltava chorando e, às vezes, ainda tentava dissimular o seu verdadeiro estado emocional. Não entendia o porquê daquelas crises. As lágrimas. Um forte abraço na filha. Enfim. Gostava mesmo era da companhia de sua mãe, que, entre o tanque de roupa e a sala, também voltava a ser criança.

Parte 1

Entra ano e sai ano

A cada início de ano letivo, vinham-me à memória as palavras de um velho professor já aposentado: o magistério é um eterno começar. Entrava e saía ano o mesmo ponto de partida: gente velha de cara nova, quebradas carteiras, velhas goteiras, a antiquíssima indisposição de sempre. Os sucessivos ataques cardíacos não foram suficientes para tirar a velha Ermita da sala de aula. O câncer na garganta, sim, foi a gota d’água para aquela “puxa-saco” do diretor da escola, que, além de trabalhar há vinte anos com o mesmo plano de curso, não fazia outra coisa a não ser dedurar os professores que encerravan suas atividades antes do horário previsto. Era uma espécie de professora-mor, que vivia lamentando-se do salário e devendo ao taberneiro da esquina. O destino dos que abraçam o magistério, muitas das vezes, tem sido este: recuperar-se de um AVC e esperar a tão sonhada aposentadoria.

Aquele ano não foi diferente.

Os alunos de sempre: trabalhadores do Distrito Operário, que passavam o dia apertando parafuso e iam à escola para satisfazer as exigências do Sistema, que, já naquela época, exigia o segundo grau completo para uma maquiada linha de montagem. Outros, trabalhadores avulsos do comércio local, feirantes, vendedores de quinquilharias e esperanças.

Procurava não faltar ao primeiro dia de trabalho. O corredor daquela escola, inaugurada no ano anterior e já precisando de reformas, estava lotado de alunos procurando suas salas. Verdadeiros mal-educados, filhos de batatas – já dizia um amigo professor-, que adentravam às salas, chutando as carteiras e destruindo o patrimônio público. Sentia-me réu confesso, um certo responsável por aquela indisciplina já que a maioria daquelas criaturas tinha sido vítima do Sistema até mesmo em minhas mãos. Soube que alguns alunos das escolas particulares eram bem piores, mais agressivos, tratavam os professores como seus empregados e ordenavam à direção demitir quem se opusesse ao mundo deles.

Não faltei. Lá estava eu, malvestido, com fome, cheio de cicatrizes na consciência e não suportando aquele esta- do de orgia. Mas estava. Saia de casa às seis da manhã, e a perspectiva de retorno era a partir das vinte e três horas. A velha casa aguardava-me todas as noites como se fosse uma pessoa desconhecida. Aquela subida era-me o maior empecilho. Fraco, quase paraplégico, às vezes era impossibilitado de dobrar a esquina por uma canseira que lembrava os poetas do final do século XIX.

Aula inaugural. Nunca gostei desse nome. Inaugurar o quê? A mesmice de sempre? As tristes metodologias do passado? Não, não é bem assim. Tudo está em constante transformação, até mesmo a consciência dos governantes, que nunca deram prioridade ao ensino, hoje já falam em reciclar professores e pagar a esses predestinados pouco mais que o salário-mínimo. Tenho minhas dúvidas. Os déspotas continuarão impondo a cartilha de despolitização, de submissão, de fantasiar a realidade.

Literatura brasileira. Não, acabo de lembrar que não era Literatura. Aquela dita aula inaugural era de Língua Portuguesa para uma turma de secundaristas que não tivera nos dois anos antecedentes, a referida disciplina. Coisas do ensino público. Acadêmicos de engenharia ministrando aulas de história, detentores do chamado curso adicional assumindo turmas do ensino médio. Outras aberrações que precisam ser objetos de estudo.

Muito sério, dei-lhes boa-noite e disse-lhes que fossem bem-vindos àquela escola. Pus o conteúdo programático no quadro-negro e argumentei ser aquele assunto encontrado em qualquer gramática especializada. Afirmei que não era de passar trabalho até porque sala de aula não é terreiro de macumba. Os despachos deviam ficar para as sextas-feiras a partir das vinte e quatro horas.

Foi uma risada geral.

Missão cumprida. Já estava de volta à velha casa quando uma turba aglomerou-se na esquina que dá acesso à rua por que deveria passar.

– Eram quatro – disse uma voz de mulher -. O pobre coitado nem pôde se defender. Não teve nem tempo de gritar por socorro. Ainda chamou o nome da mãe.

Era um rapaz de idade ignorada que tivera sido momentos antes agredido, roubado e assassinado por uma choldra bastante comum naquela vizinhança. Devia ter os seus vinte e cinco anos de idade e aparentava estar vivendo uma grave crise social, pois as roupas muito velhas que usa- va, os pés descalços, tudo levava a crer que a sua vida era um oceano de dificuldades. Aquele acontecimento marcou a minha vida, passei meses e meses com aquelas imagens na cabeça e, sempre que fazia o mesmo percurso, era inevitável não lembrar aquele episódio.

Momentos antes. Aquele era o meu roteiro. Talvez fosse o meu destino. O receio era ser morto ao subir a Rua da Fé, que diariamente estava nas páginas policiais com notícias sobre bocas de fumo, brigas de bar, latrocínio, enfim, era uma rua famosa pelos crimes que ali aconteciam. O trajeto era uma verdadeira feira do tráfico e, nos quinhentos metros até chegar à Rua dos Desvalidos, ofereciam-me de tudo: cocaína, maconha, lança-perfume e outros tipos de entorpecentes dos quais apenas tinha ouvido falar. “Subindo a Rua Natal, sinto só medo/ e sigo, passo a passo, meu caminho/, alguém me oferece um cigarrinho/, vejo a morte de perto, e tenho medo”. Esses versos, de um poeta que nunca pôde publicar seus escritos, sempre me vinham à cabeça até como forma de fingir que tudo era cenário de um filme.

Passei por aquele cadáver numa poça de lama. Fiz que não vì. Inútil. O rapaz parecia que me sorria como se estivesse implorando clemência aos autores daquela barbaridade. Na semana anterior, uma estudante foi encontrada morta em um matagal nas proximidades de uma invasão. Cheguei à rua de acesso. Em poucos minutos, a notícia espalhou-se, e um grupo de curiosos começou a ocupar a entrada do beco. A distância vi a polícia cumprindo o velho ritual.

Fevereiro nosso de cada ano

Ano novo, vida velha, 1988. O mês de fevereiro pas- sou como todos os fevereiros. As novidades inexistiam, e a expectativa de um fato inusitado não passava de utopia. Ano de eleições municipais sem que se falasse sobre política. Os jornais, timidamente, faziam referências aos acordos que começavam a ser traçados entre os partidos. Os agentes políticos brasileiros estão mais preocupados em se perpetuar no poder do que em desenvolver um projeto social que minimize a situação de miséria em que se encontra uma boa parte da população deste País. A situação ou as correntes governistas, no altar, santificando um provável candidato considerado o maior cacique político dos últimos tempos.

Até que naquela tarde horrível de um domingo es- túpido, sempre sujeito às mazelas da televisão brasileira, que se limita a mostrar bundas e programas vazios, recebi a visita de um amigo, também do ramo, ou seja, também professor, que já chegou fazendo gracinha:

– Continuas no magistério? – Perguntou com aque- le ar de deboche como se tivesse acabado de sair de uma agência bancária com o seu vergonhoso contracheque. Respondi-lhe, com a educação que me foi herdada por uma antiga professora, que era louca para saber por que antes de pe b só se escreve m. A infeliz morreu sem saber o que são consoantes homorgânicas:

Estive em Portugal.

Visitaste o coliseu?

O desgraçado não conhecia nada de História.

Aquele primeiro semestre não foi diferente. A velha casa precisando de reformas, aliás, de mudar as quatro tábuas da cozinha há anos comidas por cupim. Foi então que resolvi procurar Galalau, o meu amigo Ernandes. O miserável parecia morar no fim do mundo, ou, como se dizia no eu tempo de criança, onde o vento faz a curva. A linha de ônibus Nova Terra/Parque Temático parecia estar dando a volta ao mundo. E dormia, e acordava, e dormia, e acordava, até que cheguei. A referência batia. No percurso, passei a conhecer mais de perto a realidade da periferia. Bares, jovens prostitutas, homens nas janelas mostrando as falhas dentárias, a indústria da invasão de terras. “O senhor sabe onde mora o Ernandes?”- perguntei a um velho com o cigarro atravessado na boca. “Quem? O Galalau? O dono da área? Mas é claro, meu filho, graças a ele ainda não passamos fome neste bairro, que só é visto pelos políticos em época de eleição”, respondeu-me o homem. Aquela crítica, mais que verdadeira, seguia meus passos. Naquele dia, nem sinal de chuva. Pelo contrário. O calor era insuportável. Nem uma árvore. Nem o cadáver de uma castanheira. Nem um pedaço de tronco para dizer que ali já houve sinal de vida. Depois de várias tentativas, finalmente o endereço batia com as anotações daquele pedaço de papel. Rua dos Desesperados, primeira esquina à esquerda.

– Topo!

Fui curto e grosso. Ernandes sorriu e colocou um cd de um cantor brega cujo nome me reservo o direito de não revelar. Nada de Choppin, Beethoven, ou mais atualmente, Plácido Domingos. Aquele meu amigo parecia não conhecer nada de música erudita. O pouco que sabia aprendera com uma ex-namorada. O crime havia-o transformado completamente.

Já imaginava – disse-me.

– O quê?

Que tu não nasceu pra viver na miséria.

Ernandes era um outro homem. Quando o conheci, numa tarde qualquer de 1985, no pronto-atendimento do Distrito Operário, onde também fui explorado, era muito diferente. Homem dado à cultura, grande contador de causos e um eminente professor de História. Falava de Marx e En- gels como se tivesse participado da redação do manifesto do Partido Comunista. Agora não. Agora andava com uma pasta tipo-presidente e mais parecia um executivo; conhecia até um pouco de conjugação verbal. Entretanto, não dava mais a mínima para a concordância do verbo com sujeito e só queria saber de faturar alto. Trabalhamos na mesma escola durante anos, três, aproximadamente. No intervalo falávamos de tudo. Cansou de me falar das alunas com quem havia saído com uma tremenda naturalidade e cara de pau. Dividíamos ovo coberto como se fôssemos irmãos. Compartilhamos du- rante todo esse tempo das mesmas misérias e tínhamos os mesmos sonhos, que iam desde o ensino público gratuito e de qualidade até o envolvimento direto com a política partidária para a eleição de pessoas do nosso meio, pois, sem exagero, a Câmara de Vereadores e a Assembléia Legislativa tinham políticos da pior estirpe. Um baixinho do Bairro de São Judas Tadeu e professor da rede municipal apresentava-se como candidato e era uma das nossas opções.

O tráfico mudou aquele homem.

Não sabia qual ia ser o meu papel dentro da organiza- ção. A necessidade empurrara-me para aquele inferno. Há, consoante sabemos, inúmeras modalidades de inferno. O Inferno Verde, por exemplo, expressão ouvida em uma palestra proferida por um desconhecido intelectual amazonense, hoje professor de Literatura em uma universidade do Estado do Rio de Janeiro. A cor daquele inferno era-me desconhecida. Sabia, sim, que entrara por necessidades, necessidades das diferentes espécies possíveis, principalmente a de eliminar a aguda miséria material que me aniquilava, fazia-me refém de um oportunismo imediato e um péssimo exemplo a quem quer que fosse. Ainda existem homens capazes de avaliar seus erros e discutir suas consequências. De uma coisa, naquela altura do campeonato, eu tinha absoluta certeza: da organização eu não seria o caixa e devia limitar-me aos serviços para os quais fosse designado.

Continua na próxima edição…

*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani – Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

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