Manaus, 11 de dezembro de 2024

Quadro Negro

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*Francisco Calheiros

Continuação…

O contra-ataque

Marcado para morrer, não tinha outra saída. Ou entregava os pontos, ou partia para o contra-ataque. Evidentemente não estava pensando em montar nenhum exército. Alguém conhece exército de um homem só? Já ouvi falar. Mesmo assim e tendo consciência de minhas limitações, urgia assumir uma postura defensiva, pois estava parecendo um peru que seria morto na véspera do Natal. No meu caso, era mais provável que ainda poucos amigos se reunissem para uma despedida sem volta. Aquele ditado de que para derrotar o inimigo é preciso unir-se a ele não poderia ser posto em prática, pelo menos no meu caso, pois os meus inimigos não me queriam ao seu lado. E foi então que parti para o contra-ataque.

Primeiro, precisava de um local mais seguro em que me pudesse esconder. E foi assim, meu caro leitor, que resolvi procurar o meu velho amigo e professor Lucas, no Bairro Presidente Vargas, a popular Matinha. Encontrei-o na sua banca de churrasquinho nas proximidades do terminal de passageiros. Aproximei-me, e ele quase não me reconheceu. A barba crescida, o boné à James Dean, enfim, o novo visual atendia as necessidades.

Ocupei um quarto nos fundos da casa. O colchão de dez centímetros de espessura aumentou as dores na coluna. Adorei a prima de Lucas. Professora em Manaus e muito contente com a profissão. A partir daquele momento, não tinha mais como voltar a Vila da Barra, passando a me considerar um exilado em meu País. Ainda pensei em transferir minha cadeira de magistério para a capital. O problema é que a Secretaria de Educação não fazia favores a profissionais em estágio probatório. É, mesmo distante e mudando o visual, como realmente fiz, ainda seria um suicídio fazer todo um percurso sem deixar de ser um alvo fácil.

No meio de todo aquele drama, fazia-me falta a sala de aula. Gostava de declamar versos nas aulas de Literatura e, de alguma forma, contribuir com o desenvolvimento educacional da minha cidade. Sentia, confesso, inveja dos professores de Manaus. Por que somente lá as coisas aconteciam? Ana, a prima de Lucas, exibia seu contracheque. O salário era de dar inveja! Numa terra que apenas propagandeia o processo educacional, aquilo era simplesmente extraordinário. Ela, no entanto, sempre afirmava que era necessário cumprir a lei, pois na Constituição do Estado estava escrito que nenhum professor deveria receber menos do que três salários-mínimos mais cinquenta por cento de regência de classe. “É a lei”, repetia exaustivamente.

Chegamos a Manaus numa noite de sábado. A travessia de balsa foi em menos de meia hora. E ali estava, em Manaus. O interbairro nos levou ao bairro da Cachoeirinha, em uma vila nas proximidades da Rua Carvalho Leal. Tudo muito bonito. Que cidade bonita! Era realmente a Manaus de que tanto falavam. E eu ali, vindo do interior, tentando uma conquista às avessas, ou seja, procurando quem me pudesse ajudar na sinuca de bico em que me havia metido. Nunca pensei que o meu primeiro encontro com Manaus fosse dramático. Sempre quis passar a minha primeira noite de casado naquela cidade. E por isso que dizem que não é aconselhável fazer planos.

Mas, afinal de contas, quem eu deveria mesmo procurar? A imprensa daria credibilidade às minhas denúncias? Desde quando se pode acreditar nas palavras de uma pessoa envolvida com o narcotráfico? Eram perguntas que me vinham à cabeça e para as quais não tinha resposta. Mas estava ali e precisava reagir para pelo menos preservar minha integridade física. De apenas uma coisa tinha certeza: não poderia expor-me. Precisava de um intermediário que pudesse levar as denúncias à imprensa. E foi assim que me foi obrigado a procurar José Raimundo. Encontrei-o na sua banca de frutas na Feira do Produtor, nas proximidades do Mercado Central, que por sinal havia acabado de passar por uma bela reforma. A paisagem de Manaus encontrou-me sobremaneira. A ausência de Camelos nas vias publicas me foi uma surpresa. Na semana anterior, o Jornal Nacional, na voz inconfundível de Cid Moreira, noticiou um grave conflito, nas ruas de São Paulo, entre a polícia e os vendedores ambulantes. Já em Manaus, nada de vendedores ambulantes pelas vias públicas, muito menos barracas de quinquilharias e vendas de peixe frito nas calçadas do centro da cidade. A Avenida Eduardo Ribeiro era um verdadeiro tapete tanto pela limpeza quanto pela organização dos espaços destinados aos pedestres.

A reação de José Raimundo foi de espanto. Ele já sabia do que se tratava, afinal foi a primeira pessoa que me havia chamado a atenção. Mas o que mesmo ele fazia em Manaus? A resposta é simples, estimado leitor: abandonou o magistério naquela cidade sem lei e mudou-se para a capi- tal, onde passou a viver do comércio informal. Prometeu a si mesmo que nunca mais passaria em frente de uma escola e, às vezes, por incidente de percurso, fazia que ignorava qualquer promessa. Mas continuou ministrando aulas e passou a cursar jornalismo em uma faculdade particular.

– Algum baile de carnaval? – foi a reação do velho Mestre quando me via vestido daquele jeito – Não foi por falta de aviso.

Não podia usar do mesmo tom agressivo, já que o errado era eu. Tinha de ouvir seu sermão, calado, quase de joelhos, para tentar convencê-lo de que sua ajuda me seria a coisa mais importante do mundo naquele momento. Era um homem baixo, meio forte, uma barba em proporções normais, de cor parda, sempre falando de projetos e de estudos. Depois soube que não havia abandonado o magistério. Precisava complementar a renda com o comércio informal. É praticamente o destino dos cientistas deste País. Voltam do doutorado, aposentam-se e vão para as faculdades particulares.

A dúvida dele já tinha sido objeto de questionamento. Quem procurar? Lembrei-me daquele promotor, baixinho, que muito honrava o Ministério Público, exatamente num País onde o judiciário já perdeu quase toda a credibilidade.

Neste exato momento estou dentro de uma viatura da polícia sendo conduzido ao Tribunal de Justiça para ser ouvido em audiência que irá decidir o meu futuro. Dois guardas, armados, me acompanham e não tiram os olhos d mim. Um deles é aquele mesmo que disse não querer envolvimento com criminosos. O jornal do dia, jogado no banco de trás, noticia uma nova greve de professores, só que desta vez em todo o Estado. A novidade é que os demais setores como saúde e segurança, também anunciam paralisação. O governador trata a crise com ironia.

Assiste-me dizer que a tal audiência nunca aconteceu. No momento em que entrávamos no Tribunal, dois homens discutem e um deles é alvejado com vários tiros. Soube tempos depois que o autor da barbárie era um advogado. Por esse motivo e também por o local ter-se transformado numa balbúrdia, o expediente foi cancelado. Isso, somente para lembrar meu velho tio, só acontece com pobre. Noutro dia, sábado de visitas, vi o maior de todos os mestres, com um livro debaixo do braço, provavelmente com sua Trilha D’água, na fila de espera. Sua tentativa foi em vão, pois somente os que tinham algum grau de parentesco possuíam permissão para as visitas. Carolina, que se fazia passar por prima, nunca teve esse problema. Foi uma pena o Mestre não ter tido acesso. Muito tínhamos para conversar. Sempre houve entre nós um grande respeito. Anos depois a morte do Mestre me foi uma perda irreparável. Morreu, não sei se já disse, como indigente num hospital público. Seria enterrado no cemitério dos pobres, o Parque Tarumã, naquela parte baixa, área alagadiça, onde normalmente são sepultados os moradores excluídos do mercado de trabalho. Uma ordem, no entanto, vinda de última hora, autorizou seu sepultamento no São João Batista. Soube, por meio de um taxista aposentado, militante do Partido dos Trabalhadores, o velho Armando, que um professor mandou construir o tumulo do Mestre, que ainda teve um de seus poemas transcritos numa grande pedra de mármore.

E se procurasse o jornal A Crítica, eles me dariam ouvido? Aceitariam ouvir minha história com a maior naturalidade do mundo e ainda estampar, na edição de domingo, minha fotografia em primeira página? Não estariam dando muita atenção a um ex-professor envolvido com narcotraficantes? Não tive coragem de dirigir-me à redação do jornal. Tive, no entanto, a ideia de escrever uma longa carta. Fi-la com detalhes e informações preciosas que poderiam ajudar nas eventuais investigações. Isso era uma quarta-feira. Na edição de domingo, corri à banca de Dona Anastácia para emprestar um exemplar do jornal. Tive de esperar mais uma semana.

O promotor baixinho, que esperneava contra as irregularidades do próprio Judiciário, segundo o mesmo jornal, resolveu apurar as denúncias. Numa longa entrevista, disse que já tinha conhecimento de fatos da mesma natureza em outros municípios envolvendo traficante internacionais. Portanto, a Vila da Barra não estava sendo a única vítima grande atentado que estava sendo orquestrado contra a democracia brasileira. Uma intervenção federal no Estado vez pudesse estancar aquele lamaçal com as vísceras pútridas.

Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

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