Manaus, 26 de julho de 2024

Resgatar, verbo transitivo…

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No momento em que as ações do Conselho Municipal de Cultura se voltam para a reconstrução da memória cultural de nossa terra, é hora de por em debate o conceito de “resgate”, usado até o completo esgarçamento por políticas culturais condenadas à maldição do evento. Comecemos pelo verbo “resgatar”. Curiosamente este verbo transitivo tão usado no comércio e na vida militar, passou a frequentar o vocabulário da ação política nos anos da Ditadura, significando a necessidade de recuperar a cultura brasílica, ou a identidade nacional, sequestradas ou ameaçadas pelas forças da repressão. Perdeu-se, então, o verbo”construir” bem mais afirmativo, anteriormente presente nas cogitações intelectuais brasileiras depois do impacto do movimento modernista. Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Paulo Prado, caio Prado Ir., Sérgio Duarte de Holanda, Gilberto Freyre a Câmara Cascudo tratavam de compreender e impelir os processos de construção da cultura a da identidade nacional, onde o próprio fato de estar em construção já representava um enfrentamento, uma forma de resistir e superar as barreiras históricas que contra o povo brasileiro se levantavam. A cultura brasileira era uma ação, não uma simples reação, ou uma presa sequestrada necessitando de atos de resgate. Daí que num momento de ação foi possível aparecer o samba organizado na escola de samba e a bossa nova, o concretismo e o cinema novo, num raros momentos de diálogo do Brasil com o mundo sem interferências ou complexo de inferioridade.

O aparecimento de um conceito de cultura resgatável talvez seja um dos efeitos da ditadura militar instaurada em 64. Mas em qualquer circunstância, é algo que precisa ser urgentemente demolido. Se os conceitos de identidade resgatáveis significa realmente uma forma salvacionista, que pretendia tirar das mãos do poder a pobre criação cultural prisioneira e sua recondução ao bom caminho, isto não nos serve mais porque e um dilema falso. Nenhuma cultura nacional se deixa sequestrar, ou aprisionar, se não aceitou o jugo por antecipação. Os 800 anos de dominação turca na Bulgária não fizeram os búlgaros perder a sua cultura. A presença de turistas estrangeiros na proporção de três para um nativo em todos os verões espanhóis não arranhou um milímetro a criação cultural espanhola. Sendo assim, uma identidade só é resgatável no sentido comercial do termo, nunca no sentido militar. Não existe operação militar para resgatar culturas, mas é possível resgatar culturas como se resgatam notas promissórias, o que explica, antes, uma operação de vendas na qual a cultura entrou como garantia. E aqui, infelizmente, que esta é a chave da questão. A ditadura militar, nos sabemos, tentou dobrar a seu talante a produção cultural brasileira, mas esta resistiu. A difusa natureza das massas brasileiras se aglutinou em busca da cidadania, elevou seus níveis de organização e tornou mais efetiva a influência popular na política nacional. Isto foi um ganho cultural inegável. Isto significou um aprofundamento no sentido da construção da cidadania. Mas se assim tem sido, assim foi, porque tanto se fala em resgatar a cultura nacional ? Não se surpreendam se descobrirem que não passa de um eufemismo tecnocrata. O termo “resgatar” foi primeiro usado em associação com a palavra “cultura” nos anos setenta com um programa federal que decidiu “resgatar a memória cultural dos ceramistas populares do nordeste”. O que resultou daí foi a ligação entre os artesãos primitivos e as butiques do Rio e São Paulo, fazendo chegar “cultura nacional” na decoração dos lares classe média do país. No caso do projeto do Conselho Municipal de Cultura, trata-se de buscar o passado de nossa riqueza cultural para dar alicerce às criações de hoje e permitir as criações das futuras gerações.

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