Manaus, 18 de setembro de 2024

Temporada de delírios

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Organizados em comunidades, os brasileiros costumam viver de temporadas, algumas nacionais, muitas outras regionais e até locais. E na maioria das vezes com festas que consagram a própria natureza dos que vivemos neste pedaço de mundo descoberto por Cabral, provavelmente por influência indígena e até em decorrência da lamentável experiência escravocrata, importando a bela cultura africana, fazendo-nos indiscutivelmente festeiros, mesmo que para viver sonhos efêmeros, grandiosos em sua maioria, e retornar à dureza da realidade da vida após cada Quarta-Feira de Cinzas.

Temos a temporada do samba, no Rio de Janeiro, que envolve os que têm o privilégio de habitar a Cidade Maravilhosa em festas que se repetem, desde dezembro, nos barracões onde se cria, disputa, aprende, canta, dança e leva aos píncaros da beleza a história que, em pouco mais de hora e meia, irá ser mostrada como enredo na avenida, encantando, contagiando, comovendo e emocionando, em festa singular de Carnaval. É o que também fazem os paulistas, com suas escolas de samba igualmente ricas e encantadoras, e, no mesmo período, nós deste canto do Brasil que sentimos tremer o chão do Sambódromo admirando a arte da Praça14, de Aparecida, do Morro da Liberdade, da Cidade Nova, da Compensa ou do Alvorada, tudo muito bem preparado nos galpões da avenida do samba.

A temporada desse folguedo de enorme tradição também não se resume aos 3 dias que antecedem a Quarta-Feira de Cinzas em Recife, onde o frevo e o maracatu são ensaiados e ensinados desde quando o ano se põe a terminar, como acontece com os baianos, com seus axés, com maranhenses, cearenses, em todos os recantos, enfim, deste país continente.

No Amazonas, há que falar da beleza inigualável da temporada junina, cuja preparação também não começa em junho, senão que logo depois dos festejos de Momo, com Parintins vestindo o coração do mundo de azul e de vermelho, assim como é de destacar a construção do belo em forma de Ciranda, em Manacapuru, ou o festival de Música de Itacoatiara, que atrai compositores e cantores de todos os lugares, ou ainda a temporada de pesca em que Barcelos encanta com o negro de suas águas límpidas. E o folclore se reproduz e se expande no médio e no alto Solimões, na Fonte que é Boa até no nome, no Tefé de Santa Tereza, no Santo Antônio que carrega o Içá no resplendor de suas águas, em Tabatinga das fronteiras, em Maués do guaraná e dos saterés, em Borba sob as bençãos de Santo Antônio e do Senhor dos Aflitos, na festa do Divino em Urucará ou no Festival Folclórico Benjaminense, na festa do Cupuaçu no lindo manancial das cachoeiras de Presidente Figueiredo, ou na da Laranja, nas águas negras de Eva, no exuberante Festival Folclórico do Centro Cultural dos Povos da Amazônia, no do Centro Social do Parque Dez, ou no do Colégio Marquês de Santa Cruz, e por aí vai, com o amazonense realizando seus próprios folguedos, preservando sua própria cultura nestes tempos maltratada e esquecida por quem a devia proteger.

Na semana última, o povo carioca recebeu jovens de todas as idades e de vários lugares do planeta para congraçamento musical incomparável, levando a diferentes palcos instalados e fortemente iluminados os mais variados ritmos, nos mais diferentes idiomas e diversas formas de dançar, tocar, cantar e extasiar-se com os sons amplificados por tecnologia de última geração. É o Rock in Rio, que ali se realiza bienalmente.

Uma lista de temporadas não caberia no espaço destas linhas, eis que se reproduzem o ano inteiro, por todo o país, inclusive quando a mãe Natureza favorece a convivência, mesmo não muito demorada, com a neve que cobre de branco a relva e o asfalto de cidades como São Joaquim e tantas outras da região sul.

Em outubro, Belém exibe a maior concentração e mostra de fé na Santa Padroeira, realizando o Círio de Nazaré que se desdobra em procissões por toda a semana, na terra e na água, também conduzindo ao ápice da emoção os que, contados em centenas de milhares, disputam espaço para acompanhar ou apenas para assistir à passagem do andor nos quase seis quilômetros de beleza e crença. É assim também em Aparecida do Norte, com a padroeira do Brasil, em Trindade, com romeiros que chegam a ferir os pés em longa peregrinação saindo de Goiânia até chegar à Basílica do Divino Pai Eterno, acompanhados ou não de seus carros de boi, tal como fazem nordestinos em busca das bençãos do Padre Cicero na bela Crato, do Ceará.

Agora, o Brasil vive a temporada de caça a votos, com propaganda política legalmente permitida por período que se encerra a dois dias das eleições. Estamos em tempo de programa dito gratuito de televisão, que o legislador há de ter pensado, admito eu aqui com minha proverbial inocência, para dar oportunidade a todos os que, cumprindo as regras da legislação especializada, desejem mostrar coragem para oferecer seus préstimos e serviços em benefício da melhoria da qualidade de vida dos que chamam de povo.

E de logo é de lembrar a opinião de alguns que consideram o modelo antidemocrático, que divide o tempo disponível entre partidos, coligações ou federações considerando a participação de cada um na composição da Câmara dos Deputados. Dizem os críticos, então, tratar-se de oportunidade de manutenção dos que já detêm o poder. Ali pelo ano de 1989, tivemos o exemplo de um médico paulista que, candidato à Presidência da República, preenchia inteiramente o pequeníssimo tempo que lhe cabia no programa de televisão com a frase “meu nome é Enéas”, enquanto adversários seus podiam exibir propostas em detalhes muitas vezes ornados por rica arte que a tecnologia de então já permitia. Perdeu a eleição, claro. Depois, foi o deputado federal mais votado no país, obtendo mais de 1 milhão e meio de votos em São Paulo que então formava um colégio eleitoral de aproximadamente 25 milhões de eleitores.

E mesmo agora, há agremiações políticas que escolhem alguns poucos candidatos a mandatos legislativos para uso mais demorado no total de tempo que lhes cabe, abandonando muitos outros, criando novos enéas, alguns até que nem chegam a aparecer na telinha, mesmo que fosse para um festejo posterior com a família ou com amigos. Felizmente, há as redes sociais que não precisam servir a essa discriminação.

É também temporada de agressões, de mentiras, de notícias que não se sustentam, com locatários do poder derramando-se em verdadeiros delírios de vaidades, afirmando-se detentores de suprema verdade e negando, muitas vezes até sem cuidado, o quanto possam ter deixado como legado de realizações os que os antecederam.

Em pesquisa ligeira que realizei, via internet, em outros estados da Federação, constatei, com tristeza, que essas mostras de narcisismo aqui assistidas são comuns, pelo menos neste tempo, aos que buscam permanecer no poder. É como se tivessem combinado, com frases feitas, que desmentem e ignoram o que receberam e falam da necessidade de tempo novo para “resgatar” o tempo perdido.

Negar avanços no Paraná, por exemplo, seria não retirar dos olhos a viseira que os cobriu durante a noite para permitir ao rei sono tranquilo. Assim no Ceará, com a melhor educação do País, em São Paulo, em Minas Gerais, assim aqui, negando, por exemplo, a maior universidade multicampi do país, a criação da telemedicina, a modernização das polícias, dos bombeiros, das escolas de tempo integral, do sistema de saúde que recebeu hospitais em Manaus e em todos os municípios do Interior, a ponte sobre o Rio Negro, garantindo o progresso, a Vila Olímpica, onde já treinaram atletas brasileiros a caminho das Olimpíadas, a Arena da Amazônia que para aqui trouxe jogos da Copa do Mundo, com os dois estádios de suporte, tudo que contribui para o ressurgimento de nosso futebol, que já passa a ter dois participantes na série C do campeonato brasileiro. É negar, igualmente, a realização do maior programa de alfabetização de adultos já desenvolvido no Brasil, obra de nossa UEA, a graduação de 98% do magistério de ensino fundamental do Estado, em todos os 62 municípios, o primeiro e até aqui único mestrado em direito ambiental do país, a formação de mestres e doutores em medicina em cursos de grau máximo no órgão ministerial que controla a educação brasileira em nível de pós-graduação, os mestrados e doutorados em educação, nas engenharias, nas artes ou no turismo. É também, como se possível, esconder sob sujo tapete a verdadeira revolução cultural que devolveu ao Estado e ao teatro Amazonas a importância e a imponência mundial que lhe era própria e que já formou, em música, canto, artes plásticas, mais de 30.000 amazonenses, no Cláudio Santoro de Manaus, de Parintins e de outras cidades do Interior. Atraso é – mesmo por aquele que aqui não residia, mas que tem o dever de aprender nossa História, não se lhe permitindo a ignorância – não reconhecer a importância do que foi feito para, aprimorando com o que a modernidade exigir, dar-lhe sequência. Atraso, de verdade, é abandonar as conquistas, que são do povo, e deixar que os sistemas públicos entrem em crise, em colapso, como se deu com o da Saúde que não tinha leitos para receber os pacientes da pandemia e, pior, bem pior, não cuidar para que não faltasse nos hospitais públicos o que há de mais primário para a sobrevivência humana: o oxigênio.

Negar tudo isso é o que chamo, humildemente, de temporada de delírios de vaidades.

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