Manaus, 26 de julho de 2024

Vai dormir, vai, passarinho!

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Manaus, Bairro de Flores, madrugada, calorão de setembro. Levanto-me da cama para tomar um copo de água.  Na sala de jantar, ouço o passarinho em algum lugar no quintal. Não é a primeira vez que nos encontramos, nesse horário, se é que se pode pensar assim, em encontro de gente e passarinho. Um encontro à distância é bem verdade, mas, o que importa é a comunicação dos que se encontram.  E, de minha parte, tenho me envolvido, digamos assim, com esse passarinho, ultimamente. E, sem exagero algum, posso garantir que da parte dele sinto que existe alguma correspondência, pois, se trata de passarinho que comparece para cantar regularmente nesse horário, e isso já há algum tempo. Assim, permito-me a deduzir que a regularidade dele acaba sendo sinal de interesse.

É um passarinho solitário, madrugador, cantante a capella. E eu, por não ser perito em canto de passarinho, nem sei dizer a que espécie pertence. E também digo que é canto porque não conheço melhor expressão que possa traduzir a maneira como passarinho se comunica.  Pra mim, passarinho se comunica é cantando.  Não importa o jeito como canta. Pra mim é sempre canto. Como o desse passarinho que está mais pra canto triste do que pra outra coisa.

E também penso que passarinho não canta só por cantar: há de haver motivo, justificativa, propósito; ainda mais para canto que se dá essa hora, quando os passarinhos deveriam estar quietos, possivelmente, dormindo. Algum recado deve haver nisso tudo. Estaria doente, saudoso, buscando companhia, inquieto com quê, afinal? O que quer contar o passarinho? Sem entender de canto de passarinho como vou saber?

Imagino que, se ele canta nesse horário, é para poder ser ouvido; pois, deixando para cantar às cinco da manhã, quando todos os passarinhos estão cantando, o seu canto estaria misturado com o canto dos demais, sem nenhum realce, e passaria como um canto qualquer de passarinho.  Talvez o passarinho saiba que tem gente que não gosta de escutar canto misturado, seja na mata seja na cidade, dando preferência mesmo é a canto solo, seja de gente ou de passarinho.  Cantos daqueles que a autenticidade do cantor imprime sonoridade convidativa, comovendo os ouvintes.

A única concorrência são os grilos, os gafanhotos e as esperanças. Ah, mas essa cambada canta a noite inteira. Aliás, fazem cri-cri a noite inteira. E a isso os que conhecem do assunto chamam es-tri-du-la-ção. Ainda mais o grilo, que estridula a noite inteira pensando em acasalamento; aestridulação do grilo não passa de manjada cantada desse fogueteiro dom juan das horas mortas. Menos mal. Como estridulação não é canto, resta descartada a concorrência dos insetos com o passarinho, que entraram no texto querendo desvirtuar a minha atenção (ah! danadinhos!).

Volto a me concentrar no passarinho e já me intrigando se não haveria outro passarinho madrugador como esse em outras regiões da cidade. Num impulso pego o telefone para ligar para um conhecido. Inicio a discagem e… desisto. Ainda bem… O que iria pensar ele de mim, ligando na madrugada para perguntar se tem passarinho cantando a essa hora no quintal dele?

Foi o Acaso que me impediu de completar a ligação. Mas eis que o próprio Acaso não me deixa sossegado me falando ao ouvido; “E aí, não vais querer saber de outros passarinhos solitários, cantando nessa hora em outros bairros da cidade?

Então, Senhor Acaso, se assim me propõe, faça-me essa serventia. Tem certeza que é isso mesmo que você quer? – escuto. Por favor, respondo afirmativamente. E, num instante, estava eu orbitando pelos ares de Manaus, de um lado para outro, leve como uma pena, sem o sofrimento da lei da gravidade.  Vôo esse que somente valeu pela novidade de voar ao deus-dará, porque não escutei nenhum outro passarinho por onde passei.

Retornando a Flores, por pouco, por muito pouco mesmo, as asas do esvoaçante Acaso não colidem com um espigão, no Parque Dez. Foi por milagre que não fomos ao chão. Felizmente, nos safamos, com uma manobra magistral de quem entende de vôo.

Mas nada acontece por acaso, não é mesmo, Senhor Acaso?  De volta à minha sala de jantar, fiquei algum tempo tentando decifrar o sentido desta quase-colisão. A resposta não chegava e então o Senhor Acaso reaparece e me fala baixinho: os prédios plantados no lugar das árvores estão quebrando as asas dos seres que precisam voar. Matei a charada. O passarinho madrugador canta um canto profético. Profetiza que um dia, no lugar dessa árvore amiga onde agorinha mesmo ele está cantando, se erguerá um prédio para morada humana, o que em resumo poderia se dito assim:Deveria haver um jeito de se dar moradia ao homem sem tirar a casa dos passarinhos.

Despertei, suado, assustado, com a boca pedindo água. Pulo da cama e saio do quarto procurando a sala de jantar e escuto o passarinho cantando lá fora, no quintal.

Pô! De novo! Vai, dormir, vai, passarinho!

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