Manaus, 30 de junho de 2025

Vim de igarité a remo (Ensaios e memória)

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Cultura

A Amazônia Ocidental

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A cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, constitui o núcleo concentrador e irradiador dos movimentos culturais da Amazônia Ocidental, na efervescência criadora.

Algo anunciava a predestinação da cidade para o que haveria de acontecer no processo histórico da sua formação. Desde o momento em que Lobo d’Almada transferiu a sede da Capitania de São José do Rio Negro, da vila de Barcelos para o Lugar da Barra, seu primeiro nome, em 1791, e aqui investiu a força da sua ação administrativa, exercida com probidade e competência, a cidade de Manaus ganhou a imagem do que ela seria no futuro. Nessa época já tinham decorrido 122 anos da sua fundação.

Mestre Mário Ypiranga Monteiro30, um dos seus mais respeitados historiadores, no livro Fundação de Manaus conta como nasceu a cidade. Nasceu em 1669, à margem esquerda do rio Negro, numa espécie de fortaleza construída de pedra e barro, sob a invocação de Jesus, Maria e José. Mas era conhecida por Fortaleza de São José da Barra, Fortaleza ou Forte da Barra, São José do Rio Negro, São José ou Casa Forte.

No princípio a vida era desorganizada. Vivia-se verdadeira indisciplina social. Os soldados do Forte namoravam as índias e com elas se juntavam, provocando assim a geração dos primeiros caboclos, filhos de brancos com índios. Por fim, estas pessoas formaram os primeiros grupos de habitantes da cidade, na análise de Mário Ypiranga.

A vida permaneceu nesse ritmo até 26 anos após a fundação do Forte, quando chegaram os religiosos carmelitas e assistiram à população do Lugar da Barra, e lhe deram melhor organização social. Logo ergueram uma igrejinha coberta de palha, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, que até hoje é a Padroeira da cidade. A devoção cresceu a partir daquele momento, a ponto de mover o espírito apostólico do Bispo Dom Alberto Gaudêncio Ramos, a realizar verdadeiro plebiscito entre o povo, que escolheu a Nossa Senhora da Conceição para Padroeira do Amazonas, desde 1950.

O Forte atraiu os primeiros moradores. O povo do Lugar da Barra foi construindo as suas barracas à maneira dos índios. Eram habitações muito pitorescas feitas de palha de inajá e de buçu. Os índios custaram a se acostumar às pequenas moradias, onde viviam sós, separados uns dos outros, ao contrário das suas casas primitivas que eram amplas, com acesso fácil dos seus moradores e vizinhos. Os equipamentos interiores das casas eram redes e banquinhos de madeira, lavrados na forma de aves e tatus, jabutis, etc.

No Lugar da Barra não existiam ruas. Seus moradores se comunicavam através de sinuosos caminhos. Viviam sob a sombra das árvores, às margens do rio Negro e dos inúmeros igarapés que banhavam aqueles sítios, conclui Mário Ypiranga.

Fico imaginando sobre essa paisagem urbana, talvez o ideal de uma cidade plantada na maior floresta equatorial do Planeta, diferente, bem diferente dos aglomerados urbanos trazidos pelo adventício europeu. Não fosse imposto o modelo europeu de cidade e Manaus poderia constituir um exemplo ímpar e original de cidade brasileira, amazônica, enfim. Hoje percebemos como a cidade é cortada por inúmeros pequenos rios, chamados de igarapés, que querem dizer caminhos de canoa em Nheengatu, fora àqueles que foram soterrados para a construção das avenidas de Eduardo Ribeiro e Getúlio Vargas, da cidade antiga, sem se contar com os exterminados pela incúria de administradores imprevidentes, que lhes permitiram o desmatamento das cabeceiras, só talvez para comprovar, numa demonstração eloquente e cheia de ironia, que sem a floresta os rios desaparecem!

Leio nos jornais que se estuda uma fórmula de reanimar os mais de 200 igarapés que animam a cidade. Os menores não passam de tristes esgotos. Nos maiores, ainda se pode observar alguns obstinados peixes que persistem em respirar naqueles lodaçais infectos, tanto que, vez por outra se veem garças pousadas em suas margens, pescando, à semelhança do que reverbera nos rios de água corrente e pura, da maior bacia de água doce da Terra, num contraste dantesco entre a escuridão das sujas corredeiras e a luz das maravilhosas plumas dessas aves, símbolo da translucidez das águas amazônicas. Se se conseguir restaurar a boa face dos igarapés, talvez se consiga restaurar, também, a imagem, apagada que seja daquela Manaus traçada pelos nossos irmãos índios, no berço das suas melhores origens. Aí, junto com as garças perseverantes, estarão também pescando os manauaras.

É preciso que se tome consciência do valor da água no mundo moderno e da possibilidade de um dia esse mundão de água secar. Afirmativa que constitui autêntico escândalo levando-se em conta o escandaloso que é, aos olhos do homem da beira do rio, a assertiva de que toda essa água um dia pode acabar. Acabar ou apodrecer. É preciso que se invista em tecnologia no tratamento das águas servidas que escorrem dos esgotos dos edifícios, das casas e das fábricas, no intuito de recuperar o bom funcionamento dos mananciais da cidade, levando em conta o equilíbrio do ecossistema, de modo a beneficiar a melhoria da qualidade de vida dos seus habitantes, visto ser o homem elemento essencial aos seus fundamentos. Na qualidade de vida que se manifesta desde a boa visão das paisagens limpas e cheias de vigor dos igarapés, ao consumo sadio de sua biodiversidade. A água, afinal, é o mais precioso patrimônio da Amazônia.

As primeiras ruas e praças lamacentas de Manaus surgiram em 1700, isto é, 31 anos após a sua fundação, apresentando aspecto de vila. Felizmente, os carmelitas inspiravam muita simpatia e foram atraindo diversas comunidades dos índios Pacés, Barés, Banibas e Juris, vindas dos rios Japurá e Içana. E aí começou o grande cruzamento de sangue entre europeus e índios, ou entre elementos de tribos contrárias.

Mestre Mário Ypiranga ensina que o nome de Manaus veio dos índios Manau, que habitavam o lugar. Eram uns índios muito orgulhosos. Possuíam uma verdadeira Corte. Seus domínios iam do rio Hiá, afluente do Negro, até o encontro das águas com o rio Solimões. Não gostavam os Manau dos portugueses porque os consideravam invasores. A aproximação exigiu muito de diplomacia. Nesse jogo houve até casamentos de conveniência entre os oficiais do Forte e as filhas dos chefes manau.

Aconteceu o genocídio quando os colonizadores agiram sob o impulso da ânsia mercantilista e viram nos primeiros habitantes da Região uns meros animais.

Registra-se, nesse passo, o episódio de Ajuricaba, a rebeldia de um chefe manau que se desenha entre os fastos da história e a poesia da lenda. Conta-se que ele comandou uma confederação das tribos indígenas da Amazônia interior, a Amazônia Ocidental, portanto, armando-se contra a ação dos portugueses que dominavam a região a partir de Belém, então sede da Província do Grão-Pará. Segundo o Prof. Agnello Bittencourt,

seu nome comprova do quem que também há metáforas na língua tupi, concluindo que essa palavra é a aglutinação dos termos ajuri, que significa ajuntamento, reunião, multidão, aglomeração de pessoas, animais, coisas; e o termo caba, que quer dizer maribondo, abelha – um inseto agressivo cuja picada é muito dolorosa, pondo em fuga o homem ou animal que se aproxime da colmeia.

Há outras versões correntes de que a palavra caba, na composição do nome desse notável líder nativo, refere-se a uma corruptela de taba, aldeia indígena, povoado. Ajuricaba significaria, portanto, nessa versão, reunião, ajuntamento de aldeias, de povos indígenas, a maneira de como teria enfim agido o nobre chefe índio na defesa da sua terra.

Nas suas investidas o chefe manau transformou-se em verdadeiro fantasma, símbolo daquilo que chamaram de silvícolas rebeldes. O governo português do Grão-Pará, após rigorosa devassa, conseguiu apoio da Corte de Lisboa e encarregou Belchior Mendes de Moraes de comandar as tropas legais contra Ajuricaba. Uns historiadores dizem que ele foi preso e, ao ser conduzido sob grilhões, preferiu lançar-se nas águas dos rios da Amazônia; outros dizem que ele percebeu que não lhe restava outra alternativa senão, ou de enfrentar o patíbulo que redundaria numa humilhação, ou de lançar-se ao rio como forma de libertação, transformando-se, assim, no protomártir da liberdade de sua terra, o Amazonas.

A vida heroica, muitas vezes, gera a lenda. Há muitas lendas sobre Ajuricaba. Uma delas conta que um temporal amazônico desabou sobre o navio que o conduzia preso e os marinheiros desamarraram as suas mãos para que ele ajudasse na faxina do convés. Lá pelas tantas os portugueses viram, num misto de pavor e encantamento, o vulto de Mauari descer num raio da tempestade e levar com ele, nos braços, o grande chefe índio.

Ajuricaba foi acusado de estar a serviço dos holandeses no Suriname, para prejudicar os portugueses na região do Rio Branco. Isto no intuito de indiciar esse líder heroico no crime de lesa-pátria e assim condená-lo ao castigo do enforcamento. Mas Joaquim Nabuco31 fulmina essa teoria em seu livro O Direito do Brasil, sobre a questão de limites com a Guiana Francesa, baseado em documentos definitivos, e, assim, recuperando a memória do célebre tuxaua.

E de que vivia o povo do Lugar da Barra? Vivia do plantio do algodão, do anil, do arroz, do cacau, da coleta da castanha e da extração das drogas do sertão, com a produção de banha ou manteiga de tartaruga, e a exportação de madeira. Havia indústria doméstica de redes, colheita de tabaco, roças de mandioca, plantação de milho e as atividades de pesca e viração de tartarugas. Alimentavam-se, basicamente, da caça e da pesca. E dos produtos da floresta, açaí, bacaba, patauá, buriti, uixi liso e coroa, frutas do mato de que se extrai o sumo, que os amazônidas chamam de vinho, ou a polpa que é saboreada crua ou cozida. Arroz de piquiá, por exemplo, é uma delícia. Isso tudo faz parte até hoje da mesa do amazônida.

Nestas notas de memória tentei apresentar um quadro, embora em rápidas pinceladas, dos fundamentos da nossa cultura. A culinária, os modos de se vestir, as formas de usufruir os bens da natureza, vigentes em nosso comportamento, e que bem o demonstram.

Quando em viagem noturna, de avião ou de navio, muito antes de chegar à cidade, somos surpreendidos por um clarão que rasga os caminhos da noite, no meio da maior floresta equatorial do Planeta. É de Manaus que a gente se aproxima, fronteira de civilização no centro da Amazônia, com a presença do

homem que transforma o mundo e confere nome a seus elementos, como está escrito nas páginas do Gênesis…

Ao contemplar essa visão noturna da cidade, experimento a mesma sensação de quando em companhia do meu pai visitava as casas dos seus amigos e fregueses, nas viagens pelo Paraná de Serpa. As casas mais sofisticadas do agricultor espanhol e do comerciante português, sob o som dos carrilhões anunciando as horas nos seus relógios de parede, e das barracas simples dos homens descalços, com os seus cachorros magros, mas bons de caça…

É a presença do homem, sob o impulso da sua herança espiritual, nas moradias e nas pequenas comunidades perdidas nas beiras dos rios, ou nas metrópoles iluminadas, tal como a cidade de Manaus, que vai ocupando os espaços geográficos e elaborando os fundamentos da nossa cultura.

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30 MONTEIRO, Mário Ypiranga (Manaus 1909 – 2004), professor, historiador e polígrafo brasileiro.

31 NABUCO DE ARAUJO, Joaquim Aurélio Barreto (Recife/PE 1849 – Washington/USA 1910), político, diplomata, jurista, escritor e memorialista brasileiro.

Continua na próxima edição…

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