Obra póstuma de Pablo Neruda (1904-1973), o “Livro das Perguntas” é instigante e serve, sobretudo, aos que gostariam de inquirir os fantásticos produtores de fatos do nosso cotidiano que nos causam tanta preocupação pela ausência de transparência: “A quem posso perguntar/ o que fazer neste mundo?/ Por que me movo sem querer,/ porque não posso estar imóvel?/ Por que vou rodando sem rodas,/ voando sem asas nem plumas,/ e que me deu de transmigrar/ se vivem no Chile meus ossos?” Todos sabem porque Neruda transmigrou, mas a causa mortis ainda é envolta em dúvidas: foi o câncer na próstata ou uma injeção venenosa, aplicada por um agente da Ditadura de Pinochet, quando estava internado para tratamento?
A notícia na tela da TV era sobre o protesto de familiares e pessoas ligadas aos movimentos sociais num quiosque de praia da Barra da Tijuca (Rio de Janeiro), local onde ocorreu o brutal assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe, imigrante congolês, que recebeu amparo do Estado Brasileiro e que, como outros migrantes, veio aqui conhecer o nosso Racismo Estrutural, a nossa violência brutal contra negros, índios e outras minorias. Morto a pauladas, tendo como causa aparente o fato de ir cobrar o pagamento de três dias de trabalho que lhes eram devidos pelos donos do quiosque de praia. Mas, por quê? Por que “era um negro” e não sabia com quem estava falando? Por que estava cobrando da pessoa errada? Quem eram os verdadeiros donos dos quiosques? É verdade que as milícias dominam as concessões feitas pela Prefeitura do Rio para exploração do comércio nas praias? Servidor público (no caso, um dos apontados como dono) pode ser permissionário de quiosque de praia ou de outra coisa qualquer, infringindo a lei?
As perguntas assustam e os que deveriam respondê-las não o fazem, mas resolvem rapidamente o problema com uma “lambança”: a prefeitura doa a concessão do quiosque que serviu de local de trabalho não pago e martírio do Moïse aos familiares, até 2030, como forma de compensação; e apresenta improvisadamente o croqui arquitetônico, inspirado em motivos africanos, que servirá de projeto do “quiosque memorial”. E a punição dos culpados pelo crime hediondo, fica igual à de tantos outros negros e favelados? O croqui apresentado na mídia pelas autoridades, com comoção e veemência, é o “discurso pictórico” do poder sobre os fatos. Faz lembrar Tom Wolf (1930-1918) em “A palavra pintada”, ironizando os Críticos de Arte norte-americanos do pós-guerra, que teorizaram tanto sobre as novas correntes da pintura modernista “que as obras de arte se tornaram meras ilustrações dos textos”.
A injustiça se transmuda em ato de generosidade do poder público. Esse, incapaz de dar uma resposta decente para acalmar os ânimos e mudar o curso das perguntas, usa o sofisma do marketing político e reduz a luta dos contrários ao nada. As famílias dos imigrantes e refugiados, tanto quanto às dos negros brasileiros merecem respeito e a reparação devida dos atos de violência contra eles, perpetrados pelo Estado, direta ou indiretamente. A única certeza que temos é que até o momento não se fez justiça nos casos pretéritos e que não haverá quiosques para todos.
Vale lembrar Vilém Frusser: “nós, seres pensantes, somos a dúvida que o de tudo diferente fez surgir (grifo nosso), virando-se contra si mesmo. Já que somos dúvida, inclinamo-nos para a pergunta: Por que se deu essa virada?…Alienados que somos do de tudo diferente, somos incapazes não somente de responder, mas ainda de formular a pergunta. A palavra ‘por quê’ é típica da dúvida que somos” (Da Dúvida, 2018, p.81-82). Portanto, quem porá fim à barbárie? Quem aplacará a violência contra os que a sociedade rotula como diferentes? Quem calará o ódio racial do torcedor nos estádios ao tripudiar, com palavras ou gestos, o jogador negro adversário?
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