Manaus, 18 de outubro de 2024

O velho short

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Há tempo, mais de década, comprei equipamentos para realizar caminhadas que me recomendara o doutor Marcus Barros, um dos ícones da medicina deste canto do mundo – como Euler Ribeiro, Aristóteles Alencar, Marcus Guerra, Sinésio Talhari, Raimundo Telles – passando a usar, em dias alternados da semana, os shorts que combinavam com as meias e, às vezes, com o tênis escolhido e apropriado. Subsistiram ao passar dos anos, com valentia singular, um short de cor cinza e outro vermelho, quase relíquias, e usá-los raramente significava, sempre, relembrar os tempos de exercícios matinais no Parque do Idoso, onde encontrava amigos vários, como Aderson Frota, Aluisio Ayres e muitos outros que se punham a conversar animadamente enquanto caminhavam ou depois, usando um dos bancos dali como lugar de reposição de energias.

No Dia dos Pais, 14 de agosto deste ano, também aniversário de Robério, como se a fazer homenagem a um velho amigo vesti o short de cor cinza. Fui à padaria, retornei para o café da manhã e me pus, em seguida, a assistir à missa exibida na televisão, para depois encaminhar mensagens de felicitações pela efeméride a muitos amigos e conferir as que, por generosidade suas, me enviaram. Fiquei por algum tempo entregue a lembranças, saudades, prantos, dores pela ausência do inesquecível Lourenço, o comandante de toda uma vida, lágrimas que molharam o rosto e inundaram o peito, e ao levantar, mais de hora após, constatei que o companheiro de jornada tão longa despedira-se silencioso de mim, rasgando-se irrecuperavelmente. O tecido não mais resistiu à vida e o velho short, a quem eu nem chegara a conceder aposentadoria, desfez-se.

Por que estou a ocupar o leitor falando de algo que, a princípio, pode parecer irrelevante? Afinal, roupas rasgam-se todos os dias, são descartadas, repassadas a terceiros, e muitas vezes delas nem lembramos mais. Começam conosco a vida, que logo depois do primeiro choro, às vezes até da palmada, da primeira higiene, imediatamente alguém cuida de cobrir o corpo do recém-nato, não importa se com roupas ricamente elaboradas ou com simples pedaços de pano, únicos que muitas mães até conseguem enfeitar com bordados e fitas, cheios de amor e de alegria, durante o tempo de espera da chegada da dádiva que lhes haverá de ser entregue por bondade divina. E nos vamos vestindo ao longo da vida, mesmo aqueles que, por necessidade, desamparo ou esquecimento, cobrem os corpos com peças rotas que os resguardam um pouco do frio das calçadas onde se recolhem, até sob jornais e sobre papelões, para dormir. Também vestem os corpos que a morte faz inertes e que serão devolvidos à terra, de volta ao pó. A roupa é, então, companheira por todo o tempo. Do homem dito civilizado, desde a fralda até a mortalha.

Há as que envelhecem, caem em desuso, e permanecem no armário sem serventia. São as que deixaram de nos interessar porque perderam a importância e a beleza diante de nosso senso crítico, e delas nos apartamos. E vezes há que as deixamos ali por tempo que nem sabemos, mesmo reconhecendo que existem, e muitos, os que delas se poderiam beneficiar em caso de doação. Também há aquelas que, por generosidade, são entregues em casas de convivência ou até mesmo a quem, morando nas ruas, provoca a piedade de alguns semelhantes, não sendo poucas, penso, as que vão ao lixo por decomposição decorrente de uso prolongado ou de longo tempo de existência, como meu velho short.

Estou a falar disso porque é assim que se dá com a vida. Quando jovens, novos, cheios de vigor e de sonhos, cortejamos e somos cortejados, construímos e ajudamos a construir, ouvimos e somos ouvidos, consideramos e somos considerados. Depois, há os que vão perdendo progressivamente a importância, alguns até viram chatos e fora de moda, e começam a deixar de construir, de ser ouvidos ou considerados e até passam a incomodar, como se dá, por exemplo, com roupa antiga que, igualmente inocente, ocupa no armário espaço que se quer reservar para a comprada há pouco. Também existem os que são esquecidos em suas próprias casas ou em outras para onde são levados, até com a promessa de que ali a vida será melhor. É, certamente, como fazemos quando, para desocupar espaço, encaixotamos os velhos shorts, como as camisetas, as calças, as camisas, os paletós, e dias depois nem mesmo nos lembramos do que há em cada caixa.

Roupas não falam, não sentem, não choram, mesmo quando o mofo as atinge ou as traças delas se apoderam. Humanos, sim. Esquecidas, em armários ou caixas, gavetas de qualquer dimensão, até resguardam a beleza se acompanhadas de sachês que por algum tempo as perfumam, ou mesmo da velha naftalina, o que pode significar algum cuidado de parte de quem as tem. Assim são muitos os que, envelhecidos pelo tempo e encaixotados pela indiferença, pela distância que às vezes a pressa do mundo contemporâneo é usada para justificar, recebem sachês que lhes perfumam o íntimo com visitas esperadas por tempo que nem sabem contar. E, curioso, simples mensagem telefônica pode dar-lhes o perfume do naftaleno que a velha roupa também aprecia. A diferença está em que, diversamente das peças de pano armazenadas no esquecimento, os humanos choram, sofrem, sentem, mesmo que mudos os gritos por suas dores e que suas almas possam esgarçar-se em declínio a cada inundação que lhes fizerem as lágrimas do espírito.

Depois, como se deu com o velho short, vão embora do mundo, que muitas vezes já nem é mais seu.

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