
*Francisco Calheiros
Continuação…
Velhos tempos
Aliás, não houve aula por um período de três meses consecutivos. Mês de negociação salarial com o governo. A implantação do plano de cargos e salários do magistério, 0 conhecido PCS, era o questionamento em voga. Como nos anos anteriores, o secretário de estado da educação, um baixinho, sanguessuga dos favores estatais e metido a professor, não recebeu a categoria e ainda culpou os professores pelos altos índices de evasão escolar. Cretino! Professor nenhum expulsa aluno da escola. As péssimas condições de ensino associadas aos baixos salários podem, numa primeira análise, ser a causa desse mal que coloca o Brasil numa situação de vexame entre os países mais pobres do mundo. No dia seguinte, os jornais, com raríssimas exceções, na primeira página, noticiaram a deflagração da greve dos professores. Foram três meses de contracheques zerados, com a já antecipada derrota do movimento. O ponto positivo era a participação em massa da categoria. Hoje já se observa um enfraqueci- mento do movimento. Um comodismo. Uma desilusão. Um sindicalismo que, mesmo amparado por lei, tem medo de ir às ruas. Seus líderes já não mobilizam as pessoas. Há um forte sentimento de descrédito e de apatia.
Nunca fui de falar mal desta cidade. Embora não seja daqui, sempre defendi este chão. Poderia ter ido para Manaus, a capital, que dizem ser moderna, cheia de viadutos, um aeroporto internacional de primeiro mundo. Na verdade, a mais importante cidade do Norte do País. Por impossível que pareça, não conheço Manaus. Mas é por simples falta de interesse. Fixei-me aqui, em Vila da Barra, desde que vim de um outro interior e daqui só volto para a cidade de onde saí. Já ouvi falar que em Manaus os professores não fazem greve, não são desrespeitados pelo Sistema, não são tratados como animais. Conheço um pouco da história de Manaus. Um dia talvez indo lá possa também conhecer as mulheres.
Mas voltando ao universo social brasileiro, somente um governo de origem popular seria capaz de entender o que significa uma reivindicação salarial. E estávamos muito distantes daquela realidade. Mas este dia chegará, chegará, chegará. E será maravilhoso! A festa da vitória na Avenida Paulista e no estacionamento do Estádio Municipal, onde estarei como um soldado anônimo cantando o Hino Nacional. Não trocarei a expressão mais garrida por Margarida. Não vou imaginar o dia da posse porque não tenho mais idade para determinadas emoções. A rampa do Palácio. O Rolls- -Royce preto. É melhor parar por aqui. Fico a imaginar uma realidade que pode ser uma grande frustração.
Naquele ano, perdemos a greve, aliás, nunca ganhamos, mas não abdicamos da disposição de continuarmos reivindicando não somente melhores salários, mas também um ensino público de qualidade. Reeditamos os velhos tempos da antiga APP, Associação Profissional dos Professores, quando, de mãos dadas, pari passo, saímos do Ginásio Central, conhecida sede social, descemos a Avenida João Nery rumo ao Palácio do Governo. Ocupamos a Avenida Cinco de Setembro da Rua da Província à Joaquim Nabuco, de onde podíamos observar a tropa de choque da Polícia Militar, que nos aguardava. O igarapé do centro, córrego poluído com resíduos fecais e lixo doméstico, foi novamente o palco dos conflitos. Revivia-se um passado não muito distante. Li, à época, que em Manaus os profissionais do ensino fizeram passeatas em agradecimento ao governo pelos avanços conquistados e pelos altos salários pagos aos professores.
Era a terceira paralisação de que participara no meu curto período de magistério. De volta à escola, pude observar a professora Teresa, substituta da velha Ermita, rindo dos derrotados. O livro de ponto estava recheado de ausente, ausente, ausente. Os chamados líderes do movi- mento, dentre os quais o anedótico Fernando, tinham sido devolvidos à Unidade Educacional. A diretora da Unidade, uma loira com cara de macaco, passou a perseguir a todos, sem distinção. Os contratados por tempo determinado, os mais prejudicados, foram sumariamente exonerados. Inúmeras foram as agressões que poderiam aqui ser descritas, mas não sei se isso vale muito a pena. Não entendi por que motivo não estava na lista negra dos demitidos e acusados por subversão. Entretanto foi gostoso chegar à sala de aula e rever, principalmente, aquelas alunas maravilhosas que se deleitavam com os textos de Álvares de Azevedo e se excitavam com os sonetos eróticos de Vinícius de Moraes. Gostoso mesmo era ir ao trabalho pendurado na porta de um coletivo. Suportar o odor de pessoas que há semanas não tomavam banho era normalmente a primeira tarefa do dia. Havia, é verdade, aquelas colegiais cheirando a leite-de-rosa, mas não suficientes para eliminar o fedor daqueles trabalha- dores inassistidos e escravizados pelo subemprego. Homens de trinta anos de idade com a fisionomia de setenta. O mau hálito sempre competindo com a música “Caminhoneiro”, de um dos astros da Jovem Guarda.
Quando sair deste cárcere, se sair, dedicar-me-ei a escrever a história dos movimentos sociais desta cidade, onde contarei mais detalhes sobre a minha experiência nas lutas sindicais. Já tentei fazê-lo, porém o papel que me é conseguido pela sentinela não é suficiente para rascunho. Além do mais, precisaria de realizar uma pesquisa de campo, ouvindo personalidades que participaram diretamente dos acontecimentos. O Aluísio e a Arminda, por exemplo, ainda estão vivos e têm muito o que contar. No momento, só posso sentir saudades da velha Ermita, quero dizer, da velha casa, de mamãe, e mesmo de Júlia, afinal um homem precisa sentir sempre saudades de uma mulher que lhe deu prazer. Sou de valorizar o passado, mesmo profundamente arrependido da besteira que me trouxe aqui. A culpa não foi de uma vida agreste, somente para lembrar o personagem Paulo Honório. A culpa foi mesmo desta vida urbana, que me deu uma alma urbana. Como fede esta prisão!
Galgando estrelas
Sou filho de pais separados. A educação bibliográfica que tive fez-me um homem sensível e, ao mesmo tempo, amargo. Inúmeros foram os caminhos que percorri. Um único foi-me espinhoso: o que me trouxe aqui. Não me arrependo de nada e de nada tenho arrependimento. Nunca fui poeta nem profeta, mas imaginar o futuro, não o meu, é-me um passatempo contumaz. Inúmeras são as formas de se esperar a primavera. Pena que nesta cidade só existam duas estações. E o único buquê, de flores, naturalmente, que mandei para uma mulher, foi em 1986, no meu primeiro salário do magistério. Ela, a bela Auxi, assim chamava Auxiliadora, nunca soube o autor da gracinha. Diz-se que um homem à beira do suicídio é capaz de tudo, inclusive de mandar flores para uma mulher.
Duas são também as ambições a que ainda aspiro: a minha sentença. A justiça brasileira é decepcionante. O sistema carcerário deste País está sempre superlotado. Presos sentenciados cumprindo pena em delegacias e outras aberrações já não são nenhuma novidade. Para ser bem sincero: o Judiciário é a própria impunidade, o que explica o favorecimento a quem detém o poder, ou a quem está infiltrado nos tribunais. Sou apenas mais uma vítima dessa demora. A vara criminal, entretanto, haverá de estar em silêncio, afinal sou apenas um desses trágicos sujeitos. Tudo como manda o figurino: o juiz e o Código Penal sobre a mesa. Ver o juiz aplicar a sentença ser-me-á um grande alívio, o fim de um martírio, da minha espera. Sairei daqui algemado, cercado por dois policiais, sem repórteres ou pedidos de autógrafos. Mas será que um ex-professor ainda teria direito a isso tudo? Não seria muita atenção a um sujeito que cometeu desvio de conduta? Pode ser. Se fosse, porém, um superestar, talvez houvesse cobertura da televisão, matérias estampadas na primeira página, como acontece no país dos tanques. Após a sentença, nada me será novidade. Não obstante o meu diploma de curso superior, não terei, como até hoje não tive, Cela especial. Isso não pode ser chamado de cela especial. Joga-me do em um endereço tão sujo como este. Como fede esta prisão! Mas eu mereço. A minha outra ambição seria voltar a velha casa de madeira, ao mesmo estimado acero e poder, ainda que em sonho, amar novamente aquela aluna entre os manuais de literatura e gramática. Existe uma terceira: rever minha mãe, rever minha mãe, rever minha mãe.
– Professor! O senhor tem visita – disse o guarda.
– Trouxe papel para rascunho.
Era Carolina.
Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani – Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
*Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
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Uma resposta
Calheiros, um dos poucos estudiosos das letras. Sua memória floresce sempre. Certa vez, pediu-me: “Não esqueça de Drummond em suas aulas!” Infelizmente, partiu para a eternidade antes de escrever o prefácio de meu livro de poesia como imaginava. Devo-lhe parte da influência de orador que tentamos ser. Suportou o mundo em seus ombros, nos versos do poeta mineiro, pesando não mais que a mão de uma criança.
Certamente, uma muda de Calheiros cresce em nosso chão tão pisado e seco em dias estéreis!