Manaus, 18 de outubro de 2024

O cinema da minha infância

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Dia desses, fui invadido por uma aura nostálgica, tomando tacacá na esquina da Rua Eduardo Ribeiro com a Avenida Parque, em Itacoatiara, recordando-me do antigo Cinema do Peruano, dos anos sessenta.

Peruano, não! O nome do proprietário é Luis Pomar.  Luis Pomar, ouviram? – ouvi e ainda ouço a voz firme de papai nos corrigindo, atento a menor falha de tratamento interpessoal. De modo especial, papai não admitia que as pessoas fossem chamadas por apelidos, mesmo aqueles socialmente aceitos.

Duas recordações chegaram bem fortes. A primeira, voltada à influência daqueles filmes em nossas vidas de meninos; a segunda, a aventura de perder a carteira de estudante na sala do cinema.

Vamos então, à primeira dessas recordações.

Os filmes não tinham censura classificatória. Eram liberados. Exceto quando o pai ou a mãe falasse que tal filme não era pra crianças. Aí, podia tirar o cavalinho da chuva. Isso mesmo: tirar o cavalinho da chuva. Ainda que o cavalinho fosse Thunder, Feather ou Black Jack. Não entenderam? Explico.

Allan Rocky Lane foi um dos meus artistas favoritos entre os caubóis americanos. Ambientes do velho faroeste. Paisagens com montanhas vermelhas, campinas verdes e céu azul. Salon cheio de moças alegres. Duelos memoráveis, com o artista humilhando o vilão. E Rocky Lane, praticamente a cada filme, mudando de cavalo. Nunca vi artista pra mudar tanto de cavalo. Uma hora era Feather; noutra, Thunder; e noutra, Black Jack. Um animal mais esperto que o outro. O que me inspirou a ter um dia um cavalo parecido, inteligente e companheiro, e sair por aí defendendo os fracos e oprimidos. Mas, até hoje, nessa idade, sequer montei um jegue que me carregue; imagine então enfrentar alguém do mal. Nunca tive vocação para xerife.

De emenda a essa fase do Velho Oeste, vieram os filmes estrelados por Joselito, o rouxinol espanhol. Mudaram as paisagens. Agora, as minhas retinas se encantariam com as antigas cidades espanholas, Granada, Madrid, Sevilha.  Joselito era dono de uma voz prodigiosa, sem igual, aplaudido nas telas do mundo todo. E eu, viajando ao sabor de “Violín Gitano”, “Granada”,  “Malagueña Salerosa”, haveria de acrescentar um item ao perfil do “caubói do bem”. E passei a imaginar que um o “caubói do bem” também poderia ser um cavaleiro cantante do bem.

E a vida de menino ia sendo tocada assim. Sonhos infantis caminhavam sob encomenda dos filmes. Suprimindo uma coisa aqui, acrescentando outra ali, construindo uma película imaginativa que ia se movendo por variáveis impossíveis, superando até as congêneres cinematográficas assistidas. Inclusive atravessei uma fase mística, quando então, influenciado por dois filmes, “Marcelino Pão e Vinho” e “A Primeira Missa”, cheguei a ser um bom coroinha, ajudante de missa. E só não ingressei no seminário, porque meu pai puxou pra trás e pôs um ponto final na situação, argumentando que não tinha recursos para bancar o dispendioso enxoval exigido.

“Marcelino, Pão e Vinho” era a estória de um garoto mexicano que foi abandonado bebê à porta de um mosteiro, passando a ser cuidado por monges. Mas o menino sempre perguntando pela mãe.  Ocorreu que, um dia, o mosteiro fora atacado por revolucionários, e Marcelino passou dias escondido no sótão do mosteiro, onde descobre uma estátua. No entendimento do menino a estátua precisava se alimentar. Então, ele providencia pão e vinho oferecendo-os à estátua.  A estátua, que nada mais nada menos era Jesus, ganha vida e, em agradecimento, faz operar o milagre do encontro entre o menino e a mãe.

“A Primeira Missa” era a estória de um brasileirinho chamado Bentinho.  Agora os cenários passaram a ser de uma pobre cidade do interior do Brasil. Bentinho, apesar de tudo contra, vivendo num ambiente de extrema pobreza, capricha nos estudos e se torna padre, para orgulho de sua mãe, humilde lavadeira, e de seu protetor, Mestre Zuza, um velho, sábio, que não acreditava em Deus, mas que ficou tocado com o rumo que levou a vida de Bentinho.

Entre essas estórias comoventes, havia de ter uma de terror: “O fim do mundo”. Filme que não assisti; apenas o ouvi, como antigamente se ouvia novelas pelas ondas do rádio. Era filme para adultos. Os pais não queriam que os filhos assistissem para não se impressionarem. Proibido de ver, a única alternativa era ouvir o filme, como muitos meninos fizeram, postando-se ao lado de fora do cinema para escutar os diálogos apreensivos e os gritos de horrores das personagens. Talvez tenha sido o pior filme não visto em minha vida.  Sem poder ver, cada menino era livre para imaginar os cenários mais absurdos, que compartilhavam entre si. Só com uma coisa todos concordavam: o fim do mundo devia ser a coisa mais medonha do mundo.

Pela temática desses filmes, desconfio que o Peruano havia de ter algum acerto com o pároco, pois “A primeira missa” incentivou muitos meninos a participarem mais das aulas de catecismo e das sessões preparatórias para a primeira comunhão. E o “O fim do mundo” fez com que muitos adultos, afastados da igreja, voltassem a freqüentar a missa de domingo e as novenas de terça-feira.  Pelo menos foram esses os comentários que ouvi, sem querer, de minha madrinha em conversa com minha mãe.

(próximo episódio: a aventura de perder a carteira de estudante na sala de cinema).

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