“No segundo século do período colonial, mesmo na alimentação das autoridades e soldados poucos traços restavam da culinária portuguesa …
… e há casos de funcionários coloniais retomados ao Reino que quase morreram de tanta nostalgia, especialmente pelas iguarias inventadas pe1a cozinha indígena. Olhando àquela Belém pagã e pondo de lado os preconceitos salvacionistas de Vieira, o que se vê é menos um sinal-de decadência que sabedoria dos portugueses. Num clima equatorial úmido, com um – verão constante, por que se aprisionar em roupas pesadas de casimira ou veludo? O natural era cair na tentação de seguir os nativos. Que transitavam em trajes de Adão e respondiam aos argumentos do pecado original com um olhar de desprezo. Ah! Como devia ser uma delícia viver naquela Belém indígena, não fosse os aspectos cruéis e discricionários da sociedade colonial. O próprio Vieira não cessa de denunciar as barbaridades cometidas contra os índios, mas é uma pena que o lado vitorioso das culturas indígenas ele não possa perceber, Na Amazônia dos primeiros tempos seria impensável uma cena como a dos puritanos da América do Norte convidando os índios para um jantar de Ação de Graças. Para começar, eram os índios que estavam sempre convidando os brancos, como tinham feito com Francisco Orellana em seu trajeto pelo rio Amazonas, embora quase sempre a retribuição fosse a captura e escravização dos índios. Em segundo lugar, os índios certamente teriam uma péssima impressão da cozinha europeia, ao provarem um pedaço do insípido peru, prato típico dos americanos no jantar familiar do dia de Ação de Graças. Diz um velho axioma que comer é conhecer. Por isso mesmo todas as grandes culinárias do mundo são formas de conhecimento, sistemas de sinais culturais transmitidos através do paladar e da inteligência. Um tempero sutil ou agressivo, a ênfase em certos aspectos do reino animal e a apresentação dos pratos são formas explícitas e reveladoras de uma civilização. Sendo o ato de comer algo tão vital quanto o sexo, as convenções e construções culturais que se tecem em torno destas duas atividades, por envolverem sensações primárias, são em geral um desafio para as comunidades humanas.
A culinária portuguesa anterior aos descobrimentos, era um conjunto pe cozinhas cujas receitas se baseavam na carne, na proteína animal. Depois das grandes navegações ela se torna uma culinária também marítima e não é á toa que em língua portuguesa (com o norueguês) se pode nominar todos os peixes e crustáceos dos oceanos. O que se nomeia se digere. Na medida em que o Brasil nasce da expansão portuguesa, e vai se consolidando concomitante às transformações da culinária portuguesa, acabamos por nos beneficiar. Nossa mesa é extensão direta das navegações e do amor português pelo sólido e pelas grandes misturas. Aqui, embora a nossa versão do banquete puritano tenha sido a deglutição do Bispo Sardinha, os portugueses encontraram gente refinada nos tratos da boca e do sexo. Com os povos indígenas o Brasil aprendeu a moderação nos condimentos, no uso do sal e nas virtudes do alimento consumido ainda fresco, sem defumações ou secagem ao sol. Alguns grupos nômades se alimentavam preferencialmente com frutos, bulbos, raízes, tuberas e palmitos, além da caça assada na fogueira ou secada ao sol e ao vento. Outros, os que realmente fundamentaram a cozinha amazônica e a arte culinária brasileira, porque viviam sedentariamente em suas malocas, seus caçadores e pescadores usavam técnicas refinadas de captura de presa, suas cozinhas já possuíam forno e fogão e a refinada cerâmica lhes assegurava uma alimentação que transcendia a mera subsistência. Uma parte sólida da cozinha amazônica é herança direta dos povos indígenas, que sempre prepararam pratos ainda hoje de grande reputação entre nós os cabocos amazônicos.
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