Os dias, na maioria das cidades do interior da Amazônia, são tranquilos, devido a maneira simples com que os caboclos encaram a existência humana, usufruindo dos serviços ambientais oferecidos pela floresta, após um dia de puxado labor, na busca do pão nosso de cada dia para o sustento familiar. Sentindo a brisa que viaja sobre o rio até a alma ou fazendo uma reflexão profunda sobre o devir – mesmo com pouco conhecimento sobre “problema” – ele filosofa diariamente ao interrogar a arte na obra da criação, manifestando uma relação dialética com a Natureza. E nas três esferas governamentais.
As constantes crises do capitalismo real faz com que exigências, a inflação e o arrocho imposto à classe operária sejam maiores Sob o pretexto da otimização do processo trabalhista, as indústrias dispensam, usando a retórica de que necessitam enxugar os custos de produção, mas com a aprovação da terceirização, proposta pelo PL 4330 em curso no Congresso Nacional, haverá uma grande precarização desses postos no chão das fábricas, praticamente formando uma sociedade de trabalhadores sem ocupação efetiva, como afirma Hanna Arendt, filósofa alemã.
Longe de ter acesso aos gregos que sacramentaram o termo poíêsis há milênios, estes sujeitos faziam viagens e, através da inteligência criativa, exercitavam, produziam e executavam suas atividades lúdicas, após um dia de esforço cansativo no trabalho, segundo Frigotto, Doutor em Educação, compartilhando com imenso prazer, apresentações solo ou em grupo, o resultado prático de suas habilidades para deleite de um povo ávido por cultura. A emoção enlevava o ser espiritualmente com a harmonia dos sons conduzidos pelo ar, nas audições públicas das belas-artes até aos mais distantes bairros e, ainda por cima, iluminados pela magia do luar, contrapondo-se ao descartável produzido pela industrial cultural.
Se o homem não for humanizado em suas relações e atividades laborais, agora, sem dúvida ficará mais fragilizado amanhã, obrigado a conceber um novo mundo, mas baseado na barbárie do consumo, sem que possa desenvolver a estética, o vigor da espiritualidade nas atividades artísticas e até mesmo inviabilizando o crescimento político da cidadania. Além do trabalho, o homem deve ter um tempo livre do ócio criativo para si, que, conforme o sociólogo italiano Domenico de Masi, significa trabalhar, se divertir e aprender.
No interior do Amazonas a maioria dos que lidam com a arte, aprende sozinho, toca de ouvido, improvisando o tempo inteiro e, ainda, sem o apoio institucional. Com o tempo descobrem o método e com esforço e repetição o autodidatismo faz surgir o talento escondido dentro de cada um e finalizam o aprendizado, lendo partituras. Mas a logística para adquirir um instrumento musical era um processo árduo no início do século passado, em vista dos mesmos serem fabricados no eixo Rio-Sampa. Todavia, atualmente, o ensino de música nas escolas é obrigatório, talvez se essa práxis já estivesse inclusa na grade curricular no passado, a sociedade atual não fosse tão violenta assim.
Ser músico na sociedade pós-moderna não é tarefa fácil; profissionalizar-se ainda mais, especialmente quando o desafio é tocar o instrumento que faz o estilo do coração. Porém, não há dificuldades para definir o significado de jazz, especialmente para quem bebeu na fonte ao viajar para Nova York, conviver diariamente com vários ícones do estilo como Stan Getz, Chick Corea, Oscar Peterson, Flora Purim, Airton Moreira, Tony William e Michel Brecker, e ao residir em determinado período ao lado destas feras.
O jazz é a única e mais pura forma de arte norte-americana, segundo o jornalista Humberto Amorim, e na qual o improviso dita o seguimento melódico. Por isso, ninguém consegue tocar a mesma canção da mesma forma duas vezes, conclui o referido estudioso. O estilo chegou à Velha Serpa pelas mãos dos marinheiros americanos que trabalhavam na descarga e carregamento dos navios que aportavam na rampa do porto da cidade, para depois levar ao estrangeiro os produtos extrativos regionais.
A Voz da América, às 22hs, diariamente, transmitia resenhas e crônicas com as reportagens de Hélio Costa, tendo as análises nos comentários do itacoatiarense Pedro Katá. A outra opção era prestar atenção ao relógio da Matriz que marcava, com suas badaladas, as chamadas à missa das 18hs, e correr para a sede da Rádio Difusora e ouvir foxtrote, o rhythm and blues e o jazz, em LP’s maiores do que os nacionais. Os serviços de alto-falantes do Bar do Povo, no bairro do Jauary, de propriedade do comerciante Carmelo Perrone, invariavelmente todos os dias entrava no ar, às 15h, tendo um grande alcance na periferia, mas com a programação recheada de muita música popular brasileira.
Alguns dos personagens que vamos estudar aqui têm suas histórias de vida registradas nos livros do memorialista Francisco Gomes da Silva, mas principalmente iremos encontrar no seu inédito Homens, Mulheres e Coisas de Itacoatiara, um dicionário municipal que resume cronologicamente em forma de verbetes, inúmeros, importantes e inusitados fatos históricos, biográficos e sentimentais alusivos à Cidade da Canção.
Foi no ano de 1939, num ímpeto de sensibilidade com os anseios da população, fundada, pelo Prefeito Alexandre José Antunes (1937-1942), a EMI – Escola de Música de Itacoatiara – ensino-aprendizagem formal -, com o objetivo de dar conta da considerável demanda de estudantes, movidos pela paixão verdadeira de aprender a arte, estimulados pelas apresentações dos grupos de seresteiros locais, bambas das bandas regionais ou influenciados pelos diversos ritmos que chegavam à terra pelas ondas do rádio, ou, através do cinema mudo, salas nas quais os músicos locais eram contratados por temporadas para acompanhar os filmes, sonho turbinado pela economia que fez, de apenas uma utopia, o intangível ser realidade, ocupando a geração de crianças e da juventude de então com o ensino humanístico, alternativa de sucesso para a formação do ser humano, em sua plenitude.
O primeiro diretor dessa instituição lítero-musical foi o multi-instrumentista Raimundo Ubirajara Fona que exerceu o cargo com um vasto curriculum na bagagem profissional que incluía o exercício de educador e compositor de música popular, flautista, violinista e ainda tocava sax e contrabaixo. Natural de Santarém/PA, imigrado para a Velha Serpa nos anos 30 do século passado, seu maior biógrafo, maestro Wilson Fonseca, afirma que embora as partituras de sua autoria tivessem sido extraviadas, cerca de uma dezena delas foi resgatada e recuperada e encontra-se em um cofre forte, na maior instituição histórica, artística e cultural da cidade. Ele é tão importante no ramo que é citado na antologia de “Música e Músicos do Pará”, editada pela Secretaria de Cultura paraense.
Herdeiro de tradição musical, como toda família artística, montou uma banda com os irmãos Oldemar Diony Alves Pereira e Jarbas Pereira oportunizando extravasar, em bailes, eventos oficiais ou em jam sessions, a indomável genialidade de mestre interpretando todos os estilos, inclusive, tocando Beatles no estilo de xote ou baião.
Foi nessa escola que, interrompendo uma aula, o musicista Fona recebeu a visita inesperada do virtuose Didico ou Raimundo Diniz dos Santos (1923-2001), cavaquinhista, violonista e mestre na arte da archetaria, ou seja, na construção de arcos com fibra regional. Mas sua preocupação imediata era obter uma orientação para solucionar a confecção de violinos que estava “pegando”, dúvidas sobre que essências florestais da Amazônia utilizar na construção de tal instrumento, oportunidade em que, convidado pelo maestro, deu uma canja para a turma, demostrando, desta maneira, com seu jeito pacato de ser, um pouco do seu talento e da arte que dominava, proporcionando uma audição perfeita para a seleta plateia. Agenor Alves (1924-2005), outro músico extraordinário nascido na Cidade da Pedra Pintada, percussionista de primeira e bambambã no saxofone foi um dos que assistiram ao show de estreia de Didico. Apesar de seu nome constar na pagela como aluno nº 1, estudando naquele educandário desde os 15 anos, já apresentava em sua personalidade simples, o caráter de um futuro grande musicista caboclo.
A música Pedra Pintada, de Alírio Marques, homenageia muitos dos artistas da terra; infelizmente o registro em CD não está mais disponível no mercado. Luiz Gama, Doca Rattes e Zé do Icó, recebem menção entre os que tocavam metais, isto é, o saxofone. Entretanto, na relação existem tantos outros, como é o caso do fenomenal Crisóstomo, o qual, de quando em vez, nas tardinhas da Itacoatiara dos anos 1960, após alguns aperitivos, desafiava outro igual, e, em périplo pelas ruas da cidade, faziam percurso idêntico ao dos músicos de Nova Orleans (EUA), cumprindo com a função social da arte, que é alegrar as pessoas indo até a famosa Caixa d’água que os americanos construíram nos anos 1940, no bairro da Colônia. Nesse tempo, a cidade transpirava cultura, não era somente um tigre amazônico no aspecto econômico, mas, também, na área musical.
Por outro lado, o popular Satu – considerado patrimônio imemorial do Náutico Esporte Clube, eleito pelo conjunto da obra, em vista de que, quando o clube jogava no Estádio Municipal Eurico Dutra e até nas partidas realizadas no Estádio Floro de Mendonça, o pai da Terezinha Ozaky, sócio proprietário do clube, se cotizava com a diretoria para contratar os serviços de um carroceiro. Em cima de uma carroça, pintada nas cores da paixão, puxada por um trote ritmado do corcel, Satu embarcava junto com o guia – para orientar o admirável músico deficiente visual – e ia tocando de marchinhas a frevos como regularmente fazia nos bailes carnavalescos na sede do clube Cobra Coral, ou pelas principais vias da cidade, animados por fogos de artifícios. Uma das mais organizadas da cidade, a galera rubro-negra, transformando o ocorrido em um carnaval fora de época, em desfile alegre, saltitando, num verdadeiro transe, ia serpenteando pelas ruas, animando às várias centenas de populares que para ali acorriam.
Talvez o mais carismático de todos eles tenha sido Doca Rattes, que ensaiava todas as tardes e que, dialogando com o instrumento, perguntava “Saxofone por que choras?”. Quando, ‘embarcado’ em sua Monark verde, seguia pela Avenida Álvaro França em direção à Catedral, com o material de ofício as costas, tinha que dar uma paradinha, antes das missas e das procissões, por que era comum curumins e cunhantãs pedirem-lhe para dar um blues, executando pequeno trecho de uma obra que terminava invariavelmente numa nota distorcida que fazia a alegria dos petizes. O capixaba Robson Miguel, Mestre em História da música e do violão, em uma apresentação magistral no Teatro Amazonas, disse que o blues surgiu do lamento dos negros americanos, mas a julgar pelo riso das crianças…
Pertenciam a esse casting os exímios Roldão Alves, Luiz Bruno e Nelson Von. Este subindo do Pará para cá, logo recebeu a máxima itacoatirense de que ‘quem come jaraqui, nunca mais sai daqui!’ Alguns destes, quando da construção da Igreja Matriz, sob a direção do saudoso pároco de origem lusitana, Padre Joaquim Pereira, tocavam para tornar mais brando o peso das pedras Itaquatiara, carregadas nos ombros de uma multidão de homens, desde a margem do rio Amazonas até a praça hoje tomada pela Quadra Herculano de Castro e Costa – e, como toda procissão de fé exige canto -, as mulheres puxavam hinos dedicados ao Senhor e à Padroeira do lugar.
Já o intelectualizado Severino Felisberto de Santana (1913-2002) nasceu em Camaragibe (PE), Estado que mais preserva as tradições populares, folclóricas e musicais do país. Casou com dona Porcínia Batista Santana, da Paraíba. Inconformando com a vida severina do Nordeste, transferiu-se para Eirunepé(AM) permanecendo ali de 1948 a 1952, formando a banda de música do município, mas sofrendo perseguição política deixou o projeto para trás, chegando no mesmo ano a residir em Benjamin Constant, com uma breve passagem por Coari. Porém, segundo depoimento de seu filho, o microempresário Cardovan Santana , Severino Felisberto de Santana, veio para estas plagas na década de 1960. Sem sombra de dúvidas, o extraordinário maestro foi atraído pelo imã de uma determinada Pedra (En)Cantada, encravada na margem do grande rio Amazonas e aqui brilhou, sendo mais um gênio a fazer parte da constelação. É como canta Silvio Caldas em Chão de Estrelas, a cidade era um palco iluminado que tinha o cantar alegre de um viveiro…
Era maestro e ministrava aulas de acordeon, clarinete, violão e o instrumento mais utilizado no jazz. Manteve uma escola, na Avenida Manaus, próximo à Radio Difusora, local onde, nos finais de semana, eram produzidos os ensaios de seus alunos, após as aulas práticas da semana, mas parecia a harmonia de uma orquestra tocando afinada, brindando as famílias da redondeza. Ele tinha um sonho: o de soerguer a Escola de Música de Itacoatiara, mas não encontrando apoio oficial dos diversos administradores, implantou uma, anexa à sua residência.
Poliglota, lecionava francês e espanhol, mas foi professor de Língua Inglesa, na Escola Estadual Vital de Mendonça, regente da banda marcial da Escola, auxiliado por Agenor Alves. Nas horas vagas ainda era contabilista, estruturando o escritório G. F. & Costa, trabalhando com seus sócios Geraldo e Pedro Chagas. É pai de Cardovan, Cardocil, Cardozélia e Cardogildo – belas figuras humanas que, tal e qual seus pais, aprenderam a amar Itacoatiara.
Após o sucesso nos shows, os artistas celebravam brindando com o Guaraná Rio Negro ou Guanabara, marcas dos nossos mais tradicionais espumantes (com direito ao barulho característico quando a pincha era violada), no antigo Bar Imperial, de propriedade de Maximino Araújo Costa – genitor da sempre saudosa professora Maria Ivone Araújo Leite. Os que desejavam ficar alegres rapidamente degustavam o famoso Xexuá, um revigorante sexual pautado em ervas amazônicas, fabricado e envazado pela Indústria de Bebidas Xexuá Ltda, do falecido vereador Arnóbio Frias de Oliveira.
A vocação para a arte veio da etnia Tupi Guarani quando habitava a região do rio Madeira e, que, passada de geração a geração, chegou até nós. Os ritos cerimoniais eram comemorados pelos indígenas ao som do membiratará, mas, como ensina nosso emérito professor, não esqueçamos que no final do século XVII, quando o Padre Antônio Vieira administrou uma missão a partir de Aibi, atual Ilha do Risco, designou o jesuíta italiano João Maria Gorzone para missionar em Serpa e ele era um exímio flautista. São raros os municípios que, no Brasil, conseguiram constituir escolas de educação formal na área da música, com ensino-aprendizagem gratuito e a garantia de qualidade certificada por várias gerações.
Atualmente, esses ícones fazem parte da Orquestra Sinfônica de Itacoatiara, lá no céu, acompanhados por um coro angélico sob a regência de Pedro, o apóstolo, na missão de evangelização dos irmãos espirituais, ganhando bônus-horas para a evolução individual por que estão se apresentando divinamente bem em teatros maravilhosos do mundo espiritual, fazendo turnês pelas cidades espaciais, distantes de nós 14 km. As mais visitadas, a saber, são: Colônia das Águas, que vai de Manaus à foz do Amazonas, mas fazendo parada obrigatória na Cidade Verde, para influenciar a novíssima geração de músicos contra o funk carioca; fazendo a ponte aérea entre a Colônia Nova Esperança, localizada no sentido Leste-Norte de Goiás e, finalmente, na cidade espiritual Nosso Lar, localizada acima e a Oeste da Cidade Maravilhosa. O aérobus é o meio de transporte usado para as viagens a uma velocidade ultrassônica, cujo combustível motriz é a força do pensamento, sendo, que num piscar de olhos, estão entre nós.
Banzo é uma palavra, na diáspora africana pelo mundo, que herdamos para definir a melancolia negra dos escravos, quando apresados e arrancados de suas famílias e levados para distante. Contudo, saudade só existe no dicionário da emoção, sem tradução em outra língua no Planeta que não o português brasileiro.
Com o empodramento da mulher, a socióloga Sylvia Aranha, a medica Drª Hanellore Folz de Oliveira e a crooner (filha do famoso artista Didico) Terezinha Castro, lideraram a constituição da Fundação Dom Jorge Marskkel, responsável por uma Universidade Livre de Música, que sobrevive com os recursos dos sócios, abrangendo os municípios do Médio Amazonas e trabalhando com crianças e adolescentes. As políticas públicas do município de Itacoatiara e do Estado do Amazonas nunca alcançaram a comunidade, passando direto para o Baixo Amazonas, ignorando sempre os reclamos de um povo pragmático, vocacionado para a arte musical desde o berço.
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Cada dia mais preciso e revigoranrevigorante teus artigos.