Manaus, 4 de julho de 2024

Arthur Cézar Ferreira Reis Trajetória Intelectual e escrita da história

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*Helio Dantas

Continuação…..

Capítulo I

Reconstituição da trajetória intelectual

Quais os fatores a serem levados em consideração no momento de análise e interpretação de textos, e no caso deste livro, textos historiográficos? Buscou-se evitar o caminho fácil das generalizações interpretativas quando se analisa a “obra” de um autor. No caso de Arthur Reis, que publicou regularmente de 1931 ao início dos anos 1980, faz-se necessário problematizar o que é tomado como sua “obra”, analisando a sequência cronológica. dos livros publicados, discutindo as permanências e as mudanças nas posturas de Arthur Reis, em seus pontos de vista e referências bibliográficas, assim como vincular sua produção intelectual com seu itinerário social desde que lançou seu livro de estreia, até o momento em que experimenta consagração no campo intelectual brasileiro e por fim, quando suas ideias ganham ampla difusão tanto no senso comum acadêmico quanto no popular, passando a ser alvo de estudos e pesquisas específicos.

1. Análise e interpretação de textos

Para além do debate internalismo/externalismo e da abordagem texto/contexto13, alternativas teóricas mais eficazes para enfrentar esta questão têm se apresentado. Uma delas, das quais se fará grande uso nesta análise, é a do sociólogo Pierre Bourdieu, que trabalhou sobre o conceito de campo na intenção de superar o “extremismo” das abordagens supracitadas. Conforme este sociólogo francês.

entre esses dois polos [internalismo/externalismo], muito distanciados, entre os quais se supõe, um pouco imprudentemente, que a ligação possa se fazer, existe um universo intermediário que chamo o campo literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas.14

Partindo desta perspectiva teórica, admite-se que os agentes sociais, movimentando-se segundo uma lógica social própria, tendem a agir e produzir suas obras em função desse jogo social específico e delimitado. É em função dessa delimitação que as complexas operações de internalização de valores sociais externos podem ser mais bem compreendidas e avaliadas. É a partir do jogo social próprio desse microcosmo social – que impõe suas regras e exige estratégias determinadas – que as vinculações com agentes sociais externos, tais como aqueles ligados à política, ganham outra dimensão: não mais uma relação direta de reflexo, mas uma relação mais indireta, “refratada”. É claro que, dependendo de cada conjuntura, o grau de ingerência da política no âmbito do campo de produção simbólica poderá ser maior ou menor, dada a maior ou menor autonomia do campo intelectual, por exemplo.

Caso levemos em consideração a ideia de “contexto” para compreendermos como uma determinada obra se tornou possível e viável, devemos atentar para quais contextos, de fato, se tratam. Sem dúvida deve empreender-se uma contextualização histórica, afinal é forçoso se compreender as linhas gerais e o quadro abrangente onde irá se localizar a obra e o autor. No entanto, esse quadro geral, por si só, não será capaz de levar adiante a identificação dos elementos textuais. Tal abordagem mais “internalista” deverá combinar-se, portanto, com aqueles elementos mais externos. É dessa combinação bem dosada entre uma dimensão e outra que a noção de campo vem auxiliar em uma análise que permita desvelar os processos de criação intelectual, evitando-se os equívocos comumente cometidos pela brutalização da relação entre obra/autor e contexto socioeconômico. E na medida em que se exercita esse reducionismo, identificando- se o contexto que de fato se trata, estabelecendo-se os diálogos intertextuais mais reveladores das resoluções encontradas pelo autor e obra em foco, encontra-se fatalmente o horizonte discursivo que viabilizou a emergência da obra, mas horizonte esse. que não pode se ater simplesmente à sua dimensão discursiva.

Torna-se central para o entendimento do conjunto de uma obra, que se leve em consideração a movimentação dos diferentes atores sociais legitimamente autorizados a falar sobre determina- do assunto. O jogo das representações somente passa a fazer sentido quando a movimentação dos atores sociais é levada em conta, buscando-se entender qual é a lógica social que preside tal movi- mentação. Pois é essa movimentação que torna o vínculo entre a dimensão da produção simbólica e a arena política, por exemplo, mais explícito, sem que se caia nos recorrentes engodos de fazer- -se uma ligação direta e fácil entre produção intelectual e grupos sociais específicos, tais como classes dominantes ou elites. Uma coisa é reconhecer a existência desse vínculo, outra mais difícil é demonstrar como tal vinculação é operada em cada livro em par- ticular. Os riscos de se cometer generalizações e a própria ânsia de buscar modelos já prontos fazem com que equívocos grosseiros sejam cometidos quando afirma-se, por exemplo, que um deter- minado autor adota o ponto de vista da classe social A ou B.

Paralela a essa preocupação, coloca-se também a necessidade de um maior esclarecimento do que se entende por obra de um autor. O antropólogo Luiz de Castro Faria, que dedicou grande parte de sua vida acadêmica em discussões sobre o pensamento social brasileiro, referendado pelos aportes teóricos de Pierre Bourdieu e Michel Foucault, demonstrou preocupação em apurar essa noção. Segundo ele, confusões e generalizações de toda espécie se produzem a partir da falta de cuidado ao lidar com este conceito, pois geralmente o termo obra é identificado como sinônimo de livro, e a partir da análise de um único livro pretende-se por vezes extrair generalizações que se aplicariam a toda uma obra (nesse caso, o conjunto de livros publicados de um autor, ou ainda, seu pensamento) 15.

Baseado em Michel Foucault16, Faria alerta para o fato de que uma obra (como conjunto de livros publicados) não pode ser tomada como uma unidade homogênea, visto que um autor escreve ao longo do tempo, e suas ideias, posicionamentos políticos, interesses e demandas podem se modificar. Da mesma maneira, não pode ser tomada como uma unidade certa, visto que as composições de “obras completas” são orientadas por interesses de autores e/ou editores. Dentro do conjunto de uma obra existem livros que são encomendados, outros são planeja- dos, e há ainda os que são planejados e não são publicados, ou são prometidos, mas não escritos.

Por fim, ao referir-se à obra como um livro, Castro Faria explica que esta não pode ser tomada como uma unidade imediata, visto que um livro somente ganha significação a partir de seu caráter relacional com outros livros, e com as próprias versões e edições do mesmo livro17.

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  1. Cf. a este respeito: Michel Foucault, Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 108-112. Cf. também Pedro Luís Navarro-Barbosa. O acontecimento discursivo e a construção da identidade na História. In: Vanice Sargentini, Pedro Navarro-Barbosa (orgs.). Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004, p. 104-107. Dominick LaCapra. Rethinking Intellectual History and Reading Texts. In: Dominick LaCapra, David Kaplan (orgs.). Modern European Intellectual History. Ithaca; London: Cornell University Press, 1982, p. 47-85. David Harlan. A História Intelectual e o retorno da Literatura. In: Margareth Rago (org.). Narrar o Passado, Repensar a História. Campinas: Ed Unicamp, 2000, p. 25-52. João Feres Jr. De Cambridge para o mundo,

historicamente: Revendo a contribuição metodológica de Quentin Skinner. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, n. 3, 2005, p. 655-680. Paul Ricoeur. Teoria da Interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70, 2000.

  1. Cf. Pierre Bourdieu. Os usos sociais da ciência. por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Unesp, 2003, p. 20.
  2. Cf. Luiz de Castro Faria, op. cit., p. 20.
  3. O principal texto de Michel Foucault utilizado por Luiz de Castro Faria para essa discussão é Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao Círculo de Epistemologia. In: Michel Foucault. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 82-118. (Coleção Ditos e Escritos II)
  4. Cf. Luiz de Castro Faria, op. cit., p. 23-29.

Continua na próxima edição…..

*Helio Dantas é mestre em História pela Universidade do Amazonas (2011) possui graduação em História pela Universidade Federal de Rondônia (2004). É ligado ao Grupo de Pesquisa “Amazônia”: história, e iconografia e cultura material”, na linha de pesquisa “Memoria, história e cotidiano”. Além de ser professor na rede pública Municipal de Manaus desde 2013, ocupa o cargo de historiador na Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas, e de professor no curso de história da Universidade Nilton Lins, onde coordena o Laboratório de Pesquisas em História da Amazônia.

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