Manaus, 16 de setembro de 2024

As Náiades e mãe d´água (VIII)

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Depois da madrugada – continuação

Cacilda Barbosa

Cacilda Barbosa (1941) vê o caboclo com sensualidade, exibindo cada vez mais o aspecto humano de seus versos. Há em sua obra poética forte tônus voluptuoso. Verdadeiro conúbio entre o homem e a natureza. Em “Anoitecer”

o vento lambia o chão

quando os dois se encontraram. E tudo se agitou, o mundo mudou, a paisagem se transformou no “coito do anoitecer”.

Simão Pessoa

Simão Pessoa (1956) eleva a boa altura o sentido erótico das relações sociais. De um modo geral seus textos são sarcásticos e bem-humorados, revelando um intenso conteúdo de humanidade. Mas não ficou ileso ao fascínio da paisagem. No poema “Rio Negro” ele diz que inveja

(…) o silêncio escuro destas águas.

Identifica-se com a paisagem e se integra aos seus ele mentos. Declara:

Como sede no deserto
assim me quero água.

Tenório Telles

Tenório Telles surge com a sua poética também banhada pelas águas da floresta, como professor de literatura e amigo do livro. Não é apenas leitor incansável, mas um operário dedicado à construção de uma obra singular, na função de coordenador editorial da Valer Editora, ao lado do empresário do livro Isaac Maciel. A editora dedica-se aos autores contemporâneos e à realização de um vasto programa de resgate de obras fundamentais da amazoniana.

O poeta se revela ao manifestar a sua experiência de vida por meio de metáforas, após assumir no sangue os ele mentos da paisagem onde nasceu, na região do Purus. Viveu sua infância no convívio com seu avô Francisco Telles, na Costa do Cabaleana, no rio Solimões.

No poema “Prelúdio coral”, título também do seu livro mais recente, o poeta informa:

eu venho de longe
                             de muito longe
              da outra margem
              da margem além
aquela vista pelos que se perderam
                             ————nos caminhos das águas
                             nos sertões aquosos do tempo

No poema “alumbramento” o poeta retoma o fio da meada e vê

O lencinho branco
-o aceno imóvel,
o coração na boca

da bela menina que ficou, no mesmo lugar onde ficaram ou tros elementos essenciais mostrados no poema:

No porto
ficaram
o cavalo de milho
os sonhos as cantigas de roda
a cobra-grande
a cidades das funduras
E a infância

Enfim o poeta conclui que o primeiro alumbramento ficou na figura de

Estela no seu vestidinho azul.

O poeta cada vez mais mergulha no seu mundo interior e revela, no poema “Busca”:

Navegante de mim mesmo:
– mar inconsútil de lembranças
               do que fui
               do que poderia ter sido
               : desse sendo que sou

Prossegue “Em movimento”:

assim seguirei
rio contra as margens
vida contra a morte
(…)
rio em movimento
vida madurando

no rio que se instalou na imaginação do poeta e também está na geografia física da Amazônia:

Solimões meu rio meu caminho meu irmão.

O poeta enfim integrou-se à vida urbana de Manaus e canta esse acontecimento no longo poema intitulado “Manaus – solo dissonante”, e manifesta lá pelo meio do seu texto:

te anuncio este cantar
– nem poema chega a ser –
talvez um grito
um murmurio
um piar de bacurau

bacurau, a pequena ave noturna que veio voando sobre as correntezas do rio Solimões, atravessou a larga floresta e pousou em Manaus.

A poética de Tenório Telles revela angústia existencial, inquietação pelo novo, esforço na transformação da realidade que é, enfim, uma das funções da obra de arte na sociedade, mas é, na essência, um canto por vezes dramático, por vezes cantiga de ninar, mas sempre plantado sobre as águas do Amazonas, tal como ampla vitória-régia.

A poesia ganhou força e cada vez mais se libertou das formas rigorosas, em favor da linguagem do cotidiano, mas sem prosaísmos e a presença cada vez maior da mulher no exercício da poética amazonense, no sentido que se deseja compreender neste trabalho, poesia comprometida com a paisagem dos rios e da floresta, os perfiz humanos e a densa atitude espiritual fundada na mitologia índia. Antes, desde as primeiras décadas do século XX, apenas duas mulheres se destacavam no gênero, Violeta Branca e, mais tarde, Astrid Cabral. Neste capítulo já vamos encontrar Maria José Hosannah, Artemis Veiga e Cacilda Barbosa, entre tantas outras.

Enfim, gostaria, ainda, de lembrar, da leitura que fizemos da poesia realizada com os motivos da Amazônia nestes ensaios. É a presença predominante do igapó como imagem inflexível nessa poética. O igapó é um acidente geográfico peculiar aos rios amazônicos, em regra formado por águas serenas e paradas durante as enchentes.. Por isso, em regra, não prosperam às margens dos rios de águas barrentas que são dotados de correntezas fortes até em suas margens.

Os igapós não se dão bem nessa paisagem. Proliferam nos rios de águas negras porque estes são quase que para dos nas margens, sua correnteza acontece no meio do rio nas vazantes e quase estagnado durante as cheias. Aí os igapós se formam. É a maior maravilha. Neles a pesca é feita a caniço ou espinhel. As frutas de que os peixes se alimentam caem das árvores e zoam como gaponga chamando os peixes. Nos igapós só se viaja em pequenas canoas a remo. É repleto de insetos e aves. Em reflexo com as nesgas de sol penetrados entre as folhas, formam a imagem de olhos misteriosos, como se fossem de “olhos de pajés boiando”, na concepção de Américo Antony.

Os igapós são destaques dos motivos da Amazônia na poesia amazonense, desde Tenreiro Aranha, que neles concebeu a imagem de jardins paradisíacos onde flutuam as Náiades e Nereidas, figuras da mitologia greco-romana. Mais uma vez é Américo Antony que contempla o igapó e confirma que ali “a água é quase divindade”. Violeta Branca inaugura o seu livro de estreia com um verso onde se põe “À sombra de um igapó escuro e parado”.

Max Carphentier vê “as águas dos igapós dos olhos”, E. Flávio de Sousa, um poeta situado entre os novíssimos, alia ao igapó a poronga, a poronga que é uma lanterna alimentada por querosene, presa no alto da cabeça com amarrilhos de enviras, usada para iluminar o interior dos igapós nas pescarias noturnas.

Os igapós guardam no seu mundo uma síntese da magia ancestral revelada na poética amazonense.

(Capítulo Oitavo do livro: As Náiades e a mãe-d’água, do autor).

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