Coisas tenebrosas aconteceram neste país em uma só semana. Saímos dela bem menores: famílias desabrigadas, desaparecidos e mortos em todo o Norte do país. Casas inteiras, algumas com moradores e pertences desabaram; e uma delas, com antena parabólica no teto a indicar que a modernidade não foi suficiente para reduzir a miséria e garantir o mais básico que um ser humano pode almejar: o direito à vida. Tudo desceu igarapé abaixo, diante dos olhos arregalados dos brasileiros e dos telespectadores do mundo. E isto foi, apenas, “um pouquinho de Brasil”, o mais estava por vir. A Anistia Internacional, como faz todos os anos, trouxe à luz o seu Relatório sobre os Direitos Humanos, com os dados de 2022, e fomos brindados, no pente fino sobre o mundo que temos, com o troféu de campeão de violência em quase todas as modalidades nas quais a mesma pode ser praticada. Somos o país que mais mata LGBTQIA+, que mais comete crimes de feminicídio, racismo, infanticídio e consente a violência policial. Para os que acham pouco, uma criança de treze anos, em São Paulo, armada com uma faca, mata uma professora, fere várias outras pessoas, dentro de uma sala de aula. A estatística fúnebre da COVID crava a marca de 700 mil mortos e o dobrar dos sinos lembra as fatídicas perguntas ainda não respondidas pelos culpados. Já é tarde e os telejornais do dia, em coro com o Banco Central do Brasil, essa Estrela Dalva do Mercado, ainda clamam por um “Arcabouço Fiscal Convincente”. Seria somente o escárnio, não fosse o Tic-Tac de um relógio, cravejado de brilhantes, guardado na casa de um automobilista aposentado, para renovar o ânimo das redações da mídia, fascinadas pelo mercado e premidas pela publicidade dos Bancos e Financeiras, patrocinadoras da programação das redes; e exaustas, também, pela cobertura necessária das catástrofes, que desviam, vez em quanto, nossa atenção dos malfeitos dos artífices da cizânia e do caos, na economia e na política. Ufa, sextou!
E o que faremos com essa pauta de assuntos vexatórios? Preparei-me para refletir um pouco sobre o Orientalismo, com o fito de não cometer sacrilégio ao falar do intercâmbio com a China sem fundamentação teórica. Em cima da minha mesa, está a obra de Edward W. Said (Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007), que não me deixa mentir, mas as intemperes, os vírus e as maldades da vida obrigaram-me a mudar de plano e bem cedo, ao romper do último prazo para entregar a crônica, num passar de olhos pela estante, deparo-me com a companheira de sempre, quando o assunto é violência institucionalizada: Hannah Arendt (Sobre a Violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994). Escrito entre 1968-1969, trata dos tempos difíceis da ruptura entre dois momentos da história contemporânea: as grandes guerras e o prenúncio da pós-modernidade. No tal Primeiro Mundo, a Revolução eclodiu nas Universidades Francesas e espalhou-se pela Europa, enquanto a Guerra Fria entre as potências mundiais vivia o seu momento de Glória. Por aqui, o bicho já estava pegando há alguns anos, na forma de Atos Institucionais, chibatadas, prisões, torturas e desaparecimentos, enquanto os “analfabetos políticos” depositavam nas “cestinhas patrióticas”, anéis e alianças de ouro na Campanha “Ouro para o Bem do Brasil”. Lá se vão mais de cinquenta anos, e um novo arremedo de Guerra Fria recomeça pelos mesmos cantos do mundo e aqui, entre nós, o maldito Tic-Tac de um relógio faz lembrar que mudamos muito pouco, que ainda não enterramos todos os nossos mortos e ainda nos conformamos com as mesmas desgraças de antigamente: a dominação dos poderosos, perpetuando as desigualdades e enfraquecendo a democracia.
Assim, apoiado em Arendt (p.63), concluo a minha avaliação apressada sobre o conjunto da obra desta semana: “mais uma vez, não sabemos aonde estes desenvolvimentos podem nos conduzir, mas sabemos, ou deveríamos saber, que cada diminuição no poder é um convite à violência – quando menos já simplesmente porque aqueles que detêm o poder e o sentem escapar de suas mãos, sejam eles os governantes ou os governados, têm sempre achado difícil resistir à tentação de substituí-lo pela violência”.
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