Manaus, 16 de setembro de 2024

Crônicas do cotidiano: Um país de “mão única”

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Coisas da internet, para se acreditar ou não, tiveram grande repercussão, além da insistência dos revoltados, encantonados juntos aos muros dos quartéis, clamando por “golpe de estado”. A primeira é um meme, mostra uma jovem senhora comunicando que Lula anunciara o nome de Paulo Freire para ser o seu Ministro da Educação no mandato para o qual acabara de ser eleito. Diante disso, indignada, diz que está indo para as ruas protestar e convida a todos para que façam o mesmo, porque ninguém pode permitir que o “comunismo” se instaure no país. A segunda, não é meme, mas uma notícia sobre a postura do pároco de uma Igreja Católica, na cidade de Goiânia, que, antes de iniciar a celebração da missa, pede a todos os que votaram em Lula que se retirem da Igreja, pois são indignos de participar do ato religioso. Segue-se uma discussão, o padre se despe dos paramentos, deixa-os sobre o altar e retira-se do templo. Depois de “curtir” os posts, fiquei a pensar comigo mesmo sobre Paulo Freire, que tive a felicidade de conhecer pessoalmente, e no Padre Onias Bento, que também conheci, convivi, fui aluno, colega de trabalho e tive com ele alguns momentos bem amigáveis, e por quem guardo, até hoje, admiração; e tal qual Paulo Freire, já falecido. E de onde vem essa história de país de “mão única”, que dá título a essa crônica? O cronista é autor sem muitos compromissos com a exatidão, as ideias vão aparecendo entre as brumas até firmarem-se em palavras no papel. O título não é só meu, surrupiei-o, em parte, de Walter Benjamin, com atrevimento, mas, também, para lembrar esse ser luminoso, intelectual e humanista, capaz de dizer coisas assim, ao comparar a sua existência no mundo adulto com sua primeira vez no “Carrossel” do parque de diversão, que medrosamente experimentara, levado pela mãe: “há muito tempo que o eterno retorno de todas as coisas se fez sabedoria de criança, e a vida uma embriaguez de dominação primordial, com o realejo ensurdecedor ao centro, como tesouro da coroa” (“Rua de Mão única: infância berlinense: 1900”. Autêntica, p.115, 2013). A criança de Benjamin tem medo, mas o encanto do carrossel e o amparo da mãe a encoraja para a aventura. Essa mãe ou nossos mentores intelectuais, quando nos tornamos adultos, são substituídos por nossas convicções, por nossas ideologias.

O padre Onias era o pároco de uma comunidade, das mais humildes de Manaus, por volta de 1962 ou 63, anos que antecederam à Ditadura e à Zona Franca de Manaus. Eu, estudante em um colégio comprometido com a Nova Escola e com os ideais democráticos. Com outros colegas do nosso grêmio estudantil, associamo-nos ao projeto de Alfabetização de Adultos do Bairro de São Francisco, um aglomerado de moradores migrados para a cidade e vivendo em palhoças, em ruas de chão batido e esgotos a céu aberto. E lá fomos nós ajudar o padre, de casa em casa, a convidar e convencer os Homens e Mulheres a participarem do primeiro curso de alfabetização usando o “Método Paulo Freire”, a ser ministrado no Salão Paroquial. Logo em seguida veio a Ditadura e acabou com tudo; Paulo Freire foi preso, seu método e suas práticas educativas proscritas; a Igreja Católica retornou ao conservadorismo tenebroso, o padre perdeu a paróquia e o ânimo eclesiástico; e eu cresci. O carrossel da vida continuou rodando e tocando a cantilena ideológica da desigualdade, mãe do analfabetismo funcional e político. E como em Benjamim, o carrossel roda novamente. Já morando em São Paulo, por volta de 1985, escrevendo a minha tese de doutorado e, por uma dessas coisas que só o destino explica, semanalmente, da janela do meu apartamento, em frente à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), voltei a ver Paulo Freire, magro, barbudo, bem mais velho, sempre de pé, quatro horas seguidas, depois de tantas perseguições, cumprindo o seu mister. Era como se ouvisse o realejo, mesmo não estando naquela sala de aula: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”!. Ao recusar essa sabedoria simples de Paulo Freire, que parece de criança, o Brasil segue, ainda, nessa rua de mão única da desigualdade e da intolerância. Não vai ser ministro, minha senhora, mas continuará patrono e mentor dos educadores brasileiros!

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