“Muitos amigos estrangeiros que visitam Manaus costumam reclamar do calor: O que sempre me faz lembrar uma amiga inglesa que passou alguns meses na cidade …
… Hellen era antropóloga e supostamente devia estar preparada para enfrentar condições muito mais precárias que o calor manauara. Quando nos conhecemos, ela estava presa a um leito do Hospital de Moléstias Tropicais, internada com ‘suspeita de malária. Não era malária, apenas uma virose, contraída em sua viagem ao alto rio Negro. A doce Hellen, como mais tarde observaria um parasitologista pouco sutil, tinha um metabolismo irresistível para os vírus locais. E ela acabou se transformando na grande atração do Hospital de Doenças Tropicais, onde ficou durante toda a sua permanência em Manaus, visitada protocolarmente pelo cônsul honorário da Inglaterra e pelos quintanistas de medicina que a usavam como compêndio vivo de parasitologia. Por isto, compreensivelmente, Hellen seria outra mulher depois daquela experiência. Quando deixou o hospital, e Manaus, para nunca mais regressar abandonou a antropologia e resolveu em suas próprias palavras “encontrar o seu espaço”. Atualmente ela joga búzios e faz performances num restaurante natural do West End, mas as viroses não corroeram inteiramente o seu espírito combativo. Uma vez por mês ela participa de um piquete em frente à Embaixada do Brasil, protestando contra a redução da camada de ozônio provocada pelas queimadas na Amazônia. Hellen é uma prova viva da experiência transcendental que é a Amazônia. Outro amigo, Peter Schneider, escritor berlinense, caiu na besteira de visitar Manaus em pleno mês de agosto. Fui encontrá-lo derreado junto a uma parede, à sombra de um dos derradeiros Ficos que restaram da antiga arborização da cidade. Peter ofegava como um bárbaro germânico após uma refrega com centuriões romanos da guarnição do Reno. Há um ditado amazonense que diz que, ao meio dia, nas ruas de Manaus, só encontramos cachorros e alemães. Confesso que nunca entendi esse ditado, de resto tão enigmático quanto a sabedoria do povo local. A verdade é que, ao meio dia, nem o mais faminto vira lata ousa deixar a sombra amiga onde encontrou asilo e nem mesmo um alemão de Stuttgart arriscaria abandonar o conforto de um ar refrigerado para torrar ao sol. Meu amigo Peter, que não é de Stuttgart, jamais conseguiu caminhar mais que alguns metros, em qualquer, direção em Manaus, sem que seu corpo protestasse com vertigens e torrentes de suor. A visão que ele teve da cidade foi no mínimo turva. A luz violenta quase não deixava lugar para contrastes na sua mente, e a’ impressão que ele levou dali foi de uma paisagem ondulante, certamente um efeito da constante evaporação, e a sensação de lassidão como jamais, havia experimentado, onde qualquer gesto era um esforço físico e até mesmo o ato de pensar era doloroso. Quando nos encontramos, algum tempo depois, em sua casa em Berlim, ele insistiu para que eu explicasse como alguém podia escrever em Manaus, já que o cérebro, como que lutando para não ferver na intensa temperatura, parecia ter dificuldade em realizar até mesmo as sinapses mais elementares. Para tranquilizar o amigo, expliquei que os nativos estavam perfeitamente adaptados ao clima. Mistérios da seleção natural, argumentei. Mas ele não conteve o próprio horror ao me ouvi r descrever como todos os dias, trajando apenas uma bermuda, eu me sentava à máquina de escrever c, na mesma proporção em que me desidratava, ia produzindo meus romances. Desde esse dia, ele passou a me olhar com o mesmo respeito com o qual costumamos contemplar os loucos e os excêntricos. Abstive-me de revelar que o calor baré muitas vezes me fez imaginar que o planeta Vênus um dia ainda será colonizado por astronautas amazonenses, os únicos adaptados para tal aventura.
E Peter estava carregado de razão, porque Manaus é uma cidade excêntrica, fruto de um projeto excêntrico e habitada por gente muito excêntrica. O calor, já fica claro, é ingrediente fundamental para essa excentricidade, porque, ao cozinharem banho maria os nossos cérebros, faz de cada habitante de Manaus uma peculiar criatura que jamais desperdiça energia com o raciocínio e se contenta com a baixa voltagem dos reflexos instintivos mais primitivos, atitude um tanto réptil numa cidade que tem ares de grande e decadente sáurio próximo à extinção.
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