Manaus, 18 de outubro de 2024

O Legado da Zona Franca

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Quase meio século desde que desabou sobre nós, manauaras, a desgraça da Zona Franca de Manaus …

Modelo inspirado nas experiências coloniais na África, como Zanzibar, aplicado em áreas sob regimes discricionários como era o Brasil dos anos 60 do século passado, a Zona Franca de Manaus embeveceu a classe média baré e obnubilou as elites políticas e empresariais locais mais acostumadas com processos de falência que lidar com a periferia do capitalismo monopolista em expansão. Tenho certeza absoluta que o deputado federal e poeta modernista Pereira da Silva, ao conseguir aprovar o Porto Livre de Manaus, nem sonhava que sua iniciativa em abrir um espaço não alfandegado no Roadway se transmutaria num monstro federal capaz de fazer da pacata capital amazonense um tumor canceroso que ameaça com suas metástases a própria integridade territorial do nosso estado. Sinceramente, olhando essas décadas infames não consigo encontrar nenhum real benefício, ou sinal de avanço duradouro. A nossa cidade foi brutalmente destruída, nossa cultura prostituída, nossos políticos aparvalhados e nossas classes produtoras reduzidas a pedintes. Jamais esquecerei uma reunião em 1966 na Associação Comercial do Amazonas entre os empresários nativos e alguns arrivistas do sul. Debatiam com tecnocratas de Brasília que estavam francamente perfilados com os interesses alienígenas. Quando um pobre empresário extrativista reivindicava melhores condições para a balata, por exemplo, isto soava como piada exótica e gerava gargalhadas dos tecnocratas e seus próceres sulistas. Ver alguns dos nossos mais corajosos homens de negócios, que tinham enfrentado a depressão do fim do monopólio do látex, serem tratados como se fossem membros de uma tribo primitiva, confirmou minha intuição que entravamos numa era perversa que confirmava a nossa derrota eterna. Na sequência da rendição incondicional assisti um dos grupos empresariais mais importantes da terra ser rapidamente engolido ao tentar se associar a uma multinacional de origem japonesa. Bastou um decreto presidencial para transformar Manaus em Zona Franca, imediatamente instalando uma série de indústrias e anunciando uma oferta de cinquenta mil empregos. No que toca à divisão do trabalho, as indústrias da Zona Franca operavam as fases finais de montagem e acabamento dos produtos, ou seja, pura maquiagem. Eram fases que exigiam um número maior de mão-de-obra. A participação de capital oriundo do tradicional extrativismo foi mínima e era possível notar, por volta do final da década de 70, grandes comerciantes do extrativismo, atrelados como sócios minoritários, com cargos simbólicos nas empresas altamente subsidiadas instaladas em Manaus. Nos anos 80 todos esses empresários tinham desaparecido. As indústrias tudo trouxeram de fora, da tecnologia ao capital majoritário. Do Amazonas somente aproveitaram a mão-de-obra barata e os privilégios institucionais. Com essa estrutura industrial altamente artificial, a Amazônia Ocidental teve o seu quinhão da política de integração nacional. A promessa de cinquenta mil empregos não se cumpriu, mas ajudou a provocar uma explosão demográfica em Manaus. De cerca de trezentos e cinquenta mil habitantes em 1968, a cidade pulou para seiscentos mil em 1975. O aceno de empregos atraiu uma população de migrantes sem qualificação que segue chegando a Manaus. A rápida instalação de empresas comerciais, as lojas de quinquilharias importadas que pululavam no centro histórico da cidade, as firmas de consultoria, os institutos de pesquisas, as novas sucursais de instituições públicas, a horda de turistas em busca de aparelhos eletrônicos baratos e a vaga de migrantes em busca de novas oportunidades, transformou a cidade num inferno. Manaus adoeceu numa imensa favela. O diabo é que ainda há gente que acredita que temos motivo para comemorar!

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