Manaus, 18 de junho de 2025

Um novo olhar

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A Europa foi um horizonte marcante para o Brasil até a I Guerra Mundial. Hoje, neste novo milênio, quando os brasileiros vão tomando consciência de forma dilacerante de sua natureza continental, é um tema de acentuado sabor anacrônico.

Como país marcado e moldado pela colonização europeia, este horizonte jamais cessará de nos inquietar. Mas há uma mudança de eixo, uma nova abordagem, uma escala diferente de valoração, quando o pensamento brasileiro volta o seu interesse para a inter-relação cultural e econômica que ainda nos vincula ao velho continente.

No século XIX, estreitos laços de dependência econômica atavam o Brasil aos interesses da Inglaterra. Mas a nossa expressão cultural, amalgamada pelo encontro de três mundos distintos e muitas vezes contraditórios – índio, português e negro -, já era então uma inquieta busca de identidade. Da França, importou-se o pensamento positivista, o romantismo, o parnasianismo, o simbolismo e o naturalismo. E quando dizemos importar, é porque não se tratava da pura imposição da cultura portuguesa em trezentos anos de projeto colonial. As elites brasileiras dos oitocentos pretendiam ser seletivas, ainda que tardias, na escolha dos padrões culturais. No epicentro do poder, assentada sobre uma informe massa de mão-de-obra escrava, esta elite letrada aspirava a modernidade ao menos nas rígidas leis parnasianas. Nossos romancistas, românticos

ou naturalistas, seriam os primeiros a introduzir na literatura brasileira os representantes das massas obliteradas pela escravidão. E não somente os escravos, mas também os trabalhadores livres e os povos indígenas. Era, certamente, ainda uma imagem difusa e idealizada. Os índios, por exemplo, eram que nem filósofos iluministas em estado natural. Um herói indígena de Gonçalves Dias era capaz de dissertar sobre verbetes da Enciclopédia de Diderot, mas nada revelava da alteridade de seu povo. Mas tanto esses índios imaginosos, quando os escravos libertários, já representavam um esforço para escapar do maniqueísmo dos documentos coloniais. Assim, seletivamente, a minoritária elite brasileira circunvagava a cultura francesa da revolução burguesa, para dissipar as trevas coloniais que escamoteavam a realidade e até mesmo o cotidiano do jovem país tropical. “Náufragos entre sustos e paisagens”, escreveu Oswald de Andrade, o primeiro a descobrir o mecanismo importador dos padrões culturais, e desde Paris, afirmar que a grande loquacidade brasileira pela Europa era uma forma grosseira de falar da própria condição brasileira. Isto é, ao abarrotarem-se de modismos europeus, os brasileiros, pelo menos os artistas, numa interminável tagarelice sobre a superioridade perdulária da Europa no apogeu do bem estar imperialista, tagarelavam melancolicamente também sobre nossa eterna maldição de colonizados. E naufragávamos, a cada passo, entre os sustos provocados pela ascendente cultura das massas numa paisagem agressiva de mundo novo, pois na medida em que o esforço importador se tornava seletivo mais impelia o artista em direção à realidade nacional. Aquela frase de Oswald de Andrade (1890-1954) nos parece feita sob medida para definir quase todos os nossos escritores, artistas plásticos e músicos. E se os artistas do século dezenove, que produziram soberbas obras a partir de modelos franceses do refluxo ideológico burguês, especialmente romancistas como Machado de Assis, Raul Pompéia, José de Alencar e Inglês de Souza, numa terra manchada pela escravidão que nem de longe vislumbrava a revolução industrial, o que lhes dava uma indisfarçável natureza de anomalia, já no século vinte, a partir da expansão industrial e da trajetória da revolução burguesa à brasileira, o vanguardismo europeu, mais de uma vez, ao ser importado, serviria de estopim para a descida final ao inferno da realidade nacional.

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