“A obra de Sebastião Salgado trouxe para a fotografia um componente novo, que talvez venha de sua origem do sertão, de seu lado latino e brasileiro …
… de sua completa ausência de má consciência em relação ao sofrimento dos miseráveis, aos quadros da miséria humana, à ruína física, às injustiças sociais flagradas. Seu trabalho é basicamente de fotojornalismo, é para ser publicado no dia seguinte nas páginas de um jornal ou revista. E como fotojornalismo, uma tradição o antecede, que passa por Cartier-Bresson, mas faz referência ao brasileiro Walter Firmo e ao francês-africano Pierre Verger.
Serra Pelada, o palco da trágica farsa montada pelos bruxos do milagre brasileiro, é o tema de uma coleção de fotografia embebidas de paradoxo, reflexos que são de uma sociedade híbrida gerada na Amazônia. Não se pretende fazer nestas páginas uma análise das fotografias de Sebastião Salgado, pois elas se desgarram da inocência, fazendo tremer algumas vezes os fundamentos do próprio fotojornalismo: essas fotografias constituem um registro do mundo amazônico em que todas as experiências conduzem ao sonho. A matéria de sonho dessas imagens de Sebastião Salgado é a Amazônia, a sua gente trabalhadora, a profundidade íntima da força e do suor. É sobre essa solidez do espírito humano, da capacidade de perseverar e sobreviver dos brasileiros pobres, que o fotógrafo se interessa. Enfim, é a Amazônia, o espaço agonizante. Onde há 300 anos foi estabelecido um conflito que ameaça a integridade do grande vale. Um conflito que sentimos na pele e que se revela diariamente nas ruas de nossas cidades, nas estradas que abrem o caminho do desmatamento. E nestes longos anos de conflito, somente a expressão artística parece reconhecer o perigo. Nós, os brasileiros, queremos esquecer, cobrir a incômoda situação com os velhos argumentos de um progresso que sustentou os pioneiros do século XIX e hoje sofre severos reveses na opinião dos conservacionistas e ecologistas. Estamos persistindo no mesmo caminho cego da depredação. Vendados pela ideologia do progresso, ninguém toma em consideração esses filhos incômodos de uma humanidade primitiva que impedem o caminho da sociedade até o lucro. E se somos aparentemente donos do maior poder de persuasão, o que são algumas centenas de estranhos homens armados de bordunas para impedir uma estrada? Afinal, não é com estradas que se faz um país? Não são elas as artérias dó progresso e da integração, dignas de sonetos e discursos. Nos últimos séculos, a Amazônia tem experimentado o encontro nada pacífico entre duas formas de cultura. O resultado será um beco sem saída, ou o nascimento de uma nova cultura compatível. Como somos filhos do século XX, as imagens de Sebastião Salgado nos cativam exatamente por despertarem pavor, são na verdade provas de que almas não foram roubadas, mas se fundiram em denúncia da fadiga humana. E o que se pode dize desse fotógrafo fascinado pelos gestos dos trabalhadores? Entre outras coisas, que ele conduz seu olhar pela fronteira indistinta da civilização das imagens e o mundo ritualizado e material do trabalho intensivo, que lembra os tempos bíblicos e a era da construção das pirâmides. Num país em que os movimentos populares ainda derrapam como um coração emocionado no preconceito elitista, essas imagens fortes parecem dizer que a força do povo prescinde de qualquer sanção superior. Observando essas fotografias que brilham de suor, ou nos expõem texturas de sujeira a confundir pele e barro, deixamos o torpor da inação do preconceito e como que pactuamos com um mundo singelo, autêntico e único. Uma série de atributos que a cegueira oficial tem demorada enxergar. Mas os olhos do mundo ainda vão se abrir sob os estilhaços dos territórios da m séria. Barro, ouro e esperança; vertigem e enigma de Serra Pelada na magia de um bruxo das imagens.
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