Manaus, 20 de junho de 2025

Abaixo a pobreza

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*Marcelo Neri

As reformas precisam levar em conta que a perda de renda das classes mais baixas e o aumento na desigualdade ergueram obstáculos à retomada do crescimento econômico. 

O forte aumento da desigualdade de renda voltou à cena, algo que não ocorria havia 23 anos. 

O Brasil Vive um escândalo de corrupção de profundidade e amplitude sem precedentes. O repúdio uníssono aos desvios de recursos e malfeitos guarda a promessa de unir o país dividido. Mas não basta a sociedade reagir ao inadmissível. É preciso separar as condições necessárias das suficientes. As reformas, impulsionadas nesse ambiente de crise, podem recolocar o país na rota do crescimento sustentável, por meio de ganhos de eficiência e restauração do equilíbrio fiscal. Mas os ajustes e as reformas devem também priorizar a igualdade. Em particular, o aspecto social, tanto dos problemas como das soluções propostas, não pode ser relegado a segundo plano, especialmente numa nação democrática com os nossos níveis de desigualdade e pobreza. A crise transcorre em meio à oferta abundante de estatísticas sociais, o que nos permite avaliar a recente evolução social brasileira.

Inicialmente, cabe relembrar o nosso espetacular retrospecto de redução da pobreza durante a vigência dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da Organização das Nações Unidas. A primeira e principal meta era a redução da pobreza em 50% entre 1990 e 2015. O porcentual de pobres passou de 36,6% para 10% da população brasileira nesse período, uma queda de 72-,7%, superando com folga a meta. O desempenho mundial teve um recuo na extrema pobreza de 70,2% nesse mesmo intervalo de tempo. Vale notar que a redução da pobreza global não encontra paralelo na história estatisticamente documentada da humanidade. Ela é fruto da combinação dos milagres econômicos ocorridos na China e na Índia, nações que, anteriormente, abrigavam metade dos miseráveis do mundo.

De 1990 a 2015, tivemos no Brasil eleições diretas para presidente e, a partir de 1994, atingimos a estabilidade dos preços, o que não é pouco para o até então recordista global em inflação. A análise das razões que permitiram a queda da pobreza nesse período revela uma distribuição quase meio a meio entre o efeito favorável do crescimento e o impacto das políticas de redução da desigualdade. Ou seja, foi uma fase excepcional, resultante da harmoniosa combinação dos vetores de prosperidade e de igualdade, com estabilidade e sensibilidade.

A crise social que se manifestou no fim de 2014 decorreu de excessos e desvios feitos em relação ao caminho que vínhamos trilhando. Apenas em 2015, a pobreza subiu 19,3%, com o surgimento de 3,6 milhões de novos pobres. Houve uma explosão da desigualdade entre os rendimentos. Enquanto a renda média caiu 7%, a dos 5% mais pobres baixou 14%. Essa retração severa foi o resultado direto da decisão de não reajustar, naquele ano, os valores pagos aos beneficiados pelo Bolsa Família, em um período em que as taxas de inflação e de desemprego subiam para dois dígitos. O salário mínimo, que indexa a maior parte dos gastos sociais e previdenciários brasileiros, teve ganho real em 2015, fazendo com que a renda per capita dos grupos mais diretamente por ele afetados, situados nos estratos medianos da distribuição de renda, caísse menos: 3,8%. Resultado: os mais pobres, que dependem do Bolsa Família, tiveram a sua crise dobrada em relação à média geral da nação, enquanto os brasileiros medianos tiveram uma perda menor.

A troca, feita pelo governo, de menos gastos com o Bolsa Família por mais gastos previdenciários foi desvantajosa tanto do ponto de vista social como do fiscal. Foi ruim também no que diz respeito ao impacto sobre o consumo doméstico. Em termos de multiplicadores de gastos públicos, cada real gasto com o Bolsa Família dispara um multiplicador três vezes maior que o dos gastos previdenciários. Uma lição da crise atual é que precisamos olhar primeiro para os mais pobres, buscando protegê-los, e, assim, preservando o movimento da economia como um todo. Na sequência da crise de 1999, criamos o Bolsa Escola. Em meio às agruras da crise de 2003, nasceu o Bolsa Família. Na atual crise, desaprendemos as lições básicas.

Infelizmente, a crise não acabou em 2015. Nossas projeções revelam que, desde o fim de 2014, o aumento de pobreza foi de 29,3%. Houve a incorporação, até agora, de 5,5 milhões de novos pobres às estatísticas, apenas como decorrência da desaceleração econômica. Vejamos os detalhes desse cenário. Houve uma queda severa de renda média dos brasileiros em meados de 2016, da ordem de 6%. Depois, o recuo desacelerou para 2,8% no último trimestre do ano e para menos de 1% nos três meses encerrados em fevereiro de 2017. A diminuição da inflação, ocorrida nos últimos meses, foi o principal fator a ter contribuído para a redução na perda dos rendimentos. No ápice da crise, 70% da queda de renda era um reflexo da inflação. Hoje, a desinflação joga a favor.

Em compensação, o desemprego só aumentou e continua em alta, sendo agora o maior responsável pela perda do poder de compra das famílias brasileiras. Desemprego é sinal de desajuste do mercado de trabalho e .de frustração para todos aqueles que sofrem com a queda no padrão de vida e com a piora das perspectivas. O efeito não se restringe aos demitidos. A maioria dos ocupados passa a temer a tormenta do desemprego e, por precaução, reprime a sua demanda por bens e serviços. Em meio a esse arrocho, a crise crônica nas contas públicas reforça a ideia de que o Estado não vai poder socorrer os cidadãos em apuros, o que, por sua vez, leva a outros comportamentos precaucionais, novamente com impacto na demanda e, como consequência, no crescimento do país. O monstro que voltou à cena, nos últimos anos, é o forte aumento de desigualdade de renda, algo que não ocorria havia 23 anos, desde que vencemos o dragão da hiperinflação. A alta na concentração de renda não dá sinais de trégua há mais de um ano e explica boa parte da perda do bem-estar geral da nação. A desigualdade em ascensão reduz as propensões ao gasto. Por isso, a retomada da atividade econômica tem encontrado obstáculos que podem ser observados nos indicadores de consumo, tanto no comércio como no setor de serviços, um sintoma dessa reconcentração de renda. Num contexto recessivo e de restrição fiscal, quando o setor público precisa contar cada tostão, as considerações de equidade ganham relevo. Principalmente depois de a taxa de inflação já ter virado o Cabo da Boa Esperança.

Quando tocamos no ponto crítico da crise, perdemos os elementos do progresso social pregresso. É preciso restaurá-los um a um, explorando a complementaridade existente entre eles.

O Brasil é como um velho barco com furo no casco, necessitando de uma reforma geral: primeiro, para não afundar, e, depois, para impulsionar a sua produtividade. É certo criar leis e sinalizações para evitar que o capitão corrompa a guarda costeira. Mas não podemos deixar que falte combustível no tanque da demanda, senão ficaremos à deriva, esperando ventos que podem não soprar – ou, pior, podem trazer uma tormenta. Nem devemos esquecer o mais importante: aonde queremos chegar.

*Economista. Diretor da FGV Social. Matéria na Revista Veja, Edição nº 2529 de 10/05/2017.

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