Manaus, 22 de novembro de 2024

Crônicas do cotidiano: Dize-me com o que brincavas, e eu te direi quem és

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Confesso que ando sem assunto que mereça uma crônica. Para um cronista presunçoso (honestamente, é difícil uma exceção) isso seria motivo de vergonha e, certamente, para um não presunçoso, também. Entretanto, não é bem assim. Vocês e eu estamos todos de olhos postos nos acontecimentos e nada põe fim a essa vilania, a esse disse me disse e à disputa por milhares de páginas vazadas dos processos nas varas criminais nestes tempos. “Puxam uma pena, sai uma galinha inteira” e vira um suspense. Tanto é que baixei a zero o áudio das notícias de TV e fixei-me nos personagens cavernosos que se apresentam como advogados, ou falsos advogados, dos indigitados. Assombrado com as figuras, fui zapeando e descobri a celeuma em torno da briga entre Medicina versus Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise e fiquei mais assustado ainda, preocupado com o que poderá ocorrer no campo dessas ciências ou “ex-ciências”, se levarem isso a sério. As coisas já estão ruins e uma disputa de egos da alta inteligência em saúde, num país como o nosso, nesse momento, pode ser fatal e deixar ainda mais sequelas, que atestam, em parte, que o povo não está bem. Depois do “Napoleão de Hospício das Vacinas”, ficamos escaldados: entro na farmácia e as prateleiras à minha frente estão lotadas de caixas de “Annita” (aquele vermífugo…). Pensei que fosse delírio meu, vendo vermes de todas as qualidades espalhados pelo chão, inclusive aqueles que foram descobertos com o degelo das montanhas e aqueles vindos das entranhas do poder. Perguntei, em pânico, o que estava acontecendo? A moça do balcão, sem esperar a licença da farmacêutica, respondeu de imediato: “nossos clientes continuam tomando, quinzenalmente, esse remédio; aqui não pode faltar”! Não titubeei: vocês não pensaram, ainda, em comunicar ao “Sr. Ministro”? Merece uma investigação!

Para sanar os equívocos, recorri à racionalidade dos acontecimentos: esqueci a farmácia e foquei na questão da briga inusitada entre Médicos e Psicanalistas, profissionais que cuidam das coisas do nosso equilíbrio mental. A quem recorreremos? Acho que ainda não é o meu caso, mas, quem sabe, olhando de fora, posso até apresentar sintomas. Pensei logo nos traumas de infância, nas brincadeiras com amigos da mesma idade. Lembrei-me de um coleguinha malvado que dizia ser dono de uma fazenda de besouros “rola bosta”, e ele os amarrava com um cordão fino, daqueles de pacotes de taberna, e passava um tempão brincando de guerra. Os besouros em filas eram puxados, uns contra os outros, como batalhões. Esse colega cresceu, não virou fazendeiro, não virou militar, desses que defendem a Pátria, ou mesmo veterinário. O encontrei já adulto, trabalhador, como eu e os demais colegas. Outra vez dei com os burros n’água, pensei! Um pouco zangado com essas coisas alucinantes e ideias malucas, peguei a escada (o que para mim, hoje, é um perigo iminente), subi até as prateleiras mais altas da estante, que ficam sempre mais distantes do nosso dia a dia ou que delas nos afastamos, e encontrei um livro, síntese de uma conversa de muitos especialistas sobre as doidices do nosso tempo: A Invenção do Futuro. Barueri SP: Manole, 2005. Nele descobri uma expressão de Jorge Forbes:“o novo homem desbussolado da globalização”, que casava com a situação, mais ou menos. Folheei, em seguida, o livro de José de Souza Martins, estimado sociólogo e li: “a História não acabou nem a esperança morreu. Somos outro modo de ser…O que sobrou do que nos tiraram é o que fecunda a nossa espera. Nossas privações são a nossa riqueza e o nosso desafio”(A sociabilidade do homem simples. SP: Contexto, 2011, p.11).

Alegria maior foi encontrar um dos meus preferidos: Magia e Técnica, Arte e Política (Walter Benjamin. SP: Brasiliense, 1986). Lá no final do livro, resenhando sobre a obra de Karl Gröber, História do Brinquedo, ele aplaca minha ansiedade ao escrever: “é da brincadeira que nasce o hábito, e mesmo na sua forma mais rígida o hábito conserva até o fim alguns resíduos da brincadeira. Os hábitos são formas petrificadas, irreconhecíveis, de nossa primeira felicidade e de nosso primeiro terror” (p.253). Taí o assunto da minha crônica! E que eu não consegui evocar no início: o menino que brincava com os livros, os poucos que possuía e os que imaginava ter!

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