
*Zemaria Pinto
Continuação ….
A independência e o modernismo: ficções de fricções
Não foi o caso, claro, de Raul Bopp e Mário de Andrade, autores de Cobra Norato e Macunaíma, dois ícones do Modernismo, construídos a partir do imaginário amazônico, o que nos lembra que neste ano da graça de 2022, além de eleições majoritárias, teremos o bicentenário da “independência” e o centenário da Semana de Arte Moderna, duas ficções. Explico. O Brasil não ficou independente em 1822, pelo simples fato de que continuamos devendo vassalagem ao reino de Portugal, tendo inclusive de ceder D. Pedro (que aqui era primeiro e em Portugal, apenas o quarto), deixando o país à deriva. Independência mesmo foi a coça de 1889, derrubando o segundo Pedro e instalando a primeira ditadura militar republicana do país, quando as chamadas forças armadas tomaram gosto pela coisa. Quanto à SAM, foi um fracasso enquanto festa, até porque o Modernismo já existia havia uns bons cinco anos. Mas, os paulistas souberam usar a história para nos impor o seu modernismo, que precisava das paradoxais bênçãos do arcebispo, de um lado, e, de outro, dos líderes do Partido Integralista (nazifascista) e do Partido Comunista (ainda leninista). Um dia vocês lembrarão destas palavras. Eu mesmo só descobri isso fora do universo das Letras.
O inferno verde é o paraíso perdido?
Ainda no capítulo viajantes, destaco a presença entre nós de Euclides da Cunha, entre 1904 e 1905. Euclides é soberbo na análise das relações de trabalho da economia baseada na extração da borracha. Destaque-se o híbrido de conto, ensaio e poema em prosa “Judas Asvero”, onde o mito cristão se transforma em alegoria do homem local.3
Na apresentação de Inferno verde (1908), livro de contos de Alberto Rangel, Euclides dá sua contribuição à expansão do imaginário amazônico, especialmente relacionado à paisagem: “a Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênesis.”4 Há uma carga mítica muito forte nessas palavras, aproximando Euclides da Cunha aos primeiros navegadores do Novo Mundo, que tinham a pretensão de encontrar o paraíso bíblico.
Mas o imaginário não alimenta apenas a literatura convencional, porque parte dele é também literatura. Literatura oral, que deixa de sêlo quando vira livro, paradoxalmente, para eternizar-se. João Barbosa Rodrigues, Brandão de Amorim e Nunes Pereira são três nomes para guardar, responsáveis que foram pela recuperação da memória oral dos povos amazônidas. Poranduba amazonense, Lendas em nheengatu e português e Moronguetá são livros que deveriam ser lidos não apenas com o prazer proporcionado pela alta literatura, mas com o fervor e o sentimento que merecem os livros sagrados. Mircea Eliade tem uma classificação curiosa para essa literatura cosmogônica: aos mitos, que explicam a origem de algo, ele chama de “histórias verdadeiras”, até porque, sagradas, elas não podem ser questionadas, representando verdadeiros dogmas de fé. Às lendas e aos contos populares, entretanto, ele chama de “histórias falsas” – isto é, ficções.5 Tanto do ponto de vista mundano-literário quanto do ponto de vista religioso, ambas, histórias verdadeiras e histórias falsas, são nossa matéria de trabalho – ainda que se chamem Torá, Bíblia ou Alcorão.
A literatura da borracha: muito siso e pouco riso
O ciclo econômico da borracha foi curto, mas muito rentável, para as contas do decaído império e da nascente república. No âmbito literário, entretanto, apresenta um considerável déficit: nada além de alguns contos, meia dúzia de romances, uma ou outra peça de teatro, um poema de fôlego. Além de um projeto frustrado, destinado a se tornar um clássico: Um paraíso perdido, de Euclides da Cunha, o seu “segundo livro vingador”, do qual sobraram alguns textos que antecipavam a obra-prima, reunidos em À margem da história, de 1909, sob o subtítulo “Terra sem história”, além de uma coleção de textos erradios, sob o mesmo título previamente escolhido pelo autor.6
O poema referido é A Uiara, de 1922, de Octavio Sarmento, do qual falaremos mais adiante, em que, embora o motivo seja moderno – uma análise psicanalítica da solidão no seringal –, a forma ainda vacila num caldeirão romântico-simbolista-parnasiano. Folias do látex, de 1976, peça de Márcio Souza, tem o vaudeville como forma e o humor carnavalizado como fim. Os contos e a quase totalidade dos romances são de extração naturalista. As exceções são Dos ditos passados nos acercados de Cassianã, de 1969, de Paulo Jacob, exarado numa linguagem recriada, à maneira de Guimarães Rosa, mas afiliado ao neorrealismo, que no Brasil tomou outros nomes, inclusive o execrável “regionalismo”.
A outra exceção é O amante das amazonas, de 1992, autoria de Rogel Samuel, segundo o autor, baseado em fatos reais e paródia de romance histórico. Professor de Teoria da Literatura, o poeta, romancista e ensaísta constrói uma narrativa carnavalizada e fragmentada, abrangendo mais de 70 anos de história, contando a saga de Ribamar d’Aguirre de Souza, o narrador. Arquitetado sobre uma plataforma combinatória de paródia, alegoria, intertextualidade e metalinguagem, O amante das amazonas é o retrato expressionista de uma época, cuja essência, mais de cem anos passados, ainda não foi desvelada na sua integralidade.
A verdade da ficção e a ficção da verdade
Não poderia deixar de registrar o português Ferreira de Castro, autor de A selva, de 1930, um equívoco literário, sempre citado como “o grande romance amazônico”, mas apenas uma grande farsa, que, se tem de positivo a ênfase à denúncia já feita por Euclides da Cunha mais de 20 anos antes, perde-se numa narrativa pretensamente realista, mas banal e eivada de equívocos – inclusive com relação à natureza, da qual Castro foi péssimo observador. Paradoxalmente, entretanto, Ferreira de Castro é cultuado como um gênio da raça, e estudos ditos sérios confundem sua vida com a de seu personagem Alberto – e vice-versa. Esses estudos, aliás, chegam ao cúmulo do plágio, num processo autofágico dos próprios seguidores do autor. É um mito a ser desconstruído. Porque mito não se destrói, se descontrói, buscando anulá-lo, colocando a nu as mentiras que o enformam.7
Viva a vaia! O esquisito como paradigma
“Toda unanimidade é burra!”, diria Nelson Rodrigues 20 ou 30 anos depois, mas os modernistas descobriram isso na carne: para eles, a vaia era termômetro de inovação.
Eu disse, há pouco, que o Modernismo já existia havia uns bons cinco anos antes de 1922. Ignorando as histórias oficiais e oficiosas, guardo comigo a certeza de que o movimento que se convencionou chamar de Modernismo começa mesmo em 1917, ainda que com vários acontecimentos isolados e sem conexão uns com os outros.
Os fatos. O lançamento do livro Juca Mulato, de Menotti del Picchia, cujo nacionalismo exacerbado viria depois a se tornar em fascismo, dá ao país um herói caipira, fora dos padrões afrancesados da época. É do mesmo ano Há uma gota de sangue em cada poema, de um certo Mário Sobral, pseudônimo de um tímido Mário de Andrade, que mereceu uma crítica consagradora de Manuel Bandeira: “o livro é ruim. Mas de um ruim esquisito.” Naquele mesmo ano, Bandeira lança seu primeiro livro, A cinza das horas, predominantemente simbolista, mas de um simbolismo esquisito…, onde poemas como “Cartas de meu avô”, “Poemeto irônico”, “Poemeto erótico” e “O anel de vidro” parecem querer saltar em busca de outros livros futuros do autor.
Viva a vaia! O Modernismo começou pelo Expressionismo
Mas, o acontecimento mais importante não foi na literatura e sim nas artes plásticas: a exposição de Anita Malfatti, que após períodos de estudos na Alemanha e nos Estados Unidos, voltara ao Brasil para botar fogo no arraial, pintando sob a influência devastadora do Expressionismo. Monteiro Lobato, outro nacionalista doente, com tendências ligeiramente à esquerda, não gostou do que viu e publicou um texto violento e covarde intitulado “Paranoia ou mistificação?”. Foi a consagração de Anita, e a verdadeira fundação do Modernismo, unindo no mesmo bloco os Andrade Mário e Oswald, e um grupo de artistas e escritores de peso, que fariam, cinco anos depois, a Semana de Arte Moderna.
Viva a vaia! O filho modernista mata o pai parnasiano
É importante dizer que havia alguma coisa no ar, além dos aviões de carreira. O poema-ícone do Modernismo, “Os sapos”, de Manuel Bandeira, que seria consagradoramente vaiado na SAM, foi publicado no livro Carnaval, de 1919, onde o Simbolismo já cedera lugar a algo ainda inominado, anunciado no poema de abertura do livro, “Bacanal”: “Quero beber! cantar asneiras / no esto brutal das bebedeiras…”
Em 1921, Mário de Andrade publicou uma série de sete ensaios, intitulada “Mestres do passado”, onde, com irônica reverência, desconstrói criticamente o mito do Parnasianismo. A vaia solitária de Mário de Andrade ecoa até hoje na alma dos parnasianos, que são lidos, por quem não entende de poesia, como equívocos estéticos, quando devem ser lidos associados ao seu tempo, à sua época. Não se iludam: os parnasianos deixaram poemas de altíssima extração. Vocês só terão o trabalho de descobri-los; afinal, cem anos de menosprezo não se apagam com um simples parágrafo.
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3 CUNHA, Euclides. Amazônia, um paraíso perdido. Manaus: Valer, Governo do Amazonas, EDUA, 2003. p. 117-126.
4 Ibidem, p. 354.
5 ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Tradução: Manuela Torres. Lisboa: Edições 70, 1986. p. 15-19.
6 Amazônia, um paraíso perdido, citado como fonte em nota anterior.
7 PINTO, Zemaria. A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade. Manaus: Valer, 2021.
Continua na próxima edição…
*Zemaria Pinto tem 27 livros publicados, em gêneros diversos: poesia, teatro, contos adultos, ficção infantojuvenil, teoria literária, didáticos, artigos e ensaios sobre literatura, além de três livros de contos publicados no blog Palavra do Fingidor. Dramaturgo, tem seis peças encenadas e outras tantas inéditas. Graduado em Economia (1981), é especialista em Literatura Brasileira (1989) e mestre em Estudos Literários (2012). Sempre pela UFAM. É membro da Academia Amazonense de Letras, onde ocupa a cadeira 27, de Tavares Bastos, desde setembro de 2004. Membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, inaugurou, em fevereiro de 2016, a cadeira 59, de Nunes Pereira.
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