Manaus, 21 de junho de 2025

Quadro Negro

Compartilhe nas redes:


*Francisco Calheiros

Continuação…

PARTE II

Crise de identidade

Vivia um dilema: a fortuna ou os ensinamentos de Marx? Ainda me poderia considerar um professor? Era justo continuar naquela atividade criminosa e, ao mesmo tempo, assumir a sala de aula? E o meu passado? E os meus princípios? E o meu compromisso com as mudanças que sempre defendi nos discursos contra o capital e as tiranias? E a nossa proposta de poder?

Estava doente. Precisava de ajuda. Precisava de uma voz amiga que me pudesse mostrar algum horizonte. Procurei José Raimundo no Bairro da Esplanada. Sempre nutri uma grande admiração por aquele itacoatiarense fugido do interior por perseguições políticas. Zé era professor concursado da rede estadual de ensino e morava com sua velha mãe numa humilde casa deixada pelo marido, político de esquerda. O pai tinha sido vereador atuante naquele município. Mas que ajuda ele me poderia dar?

Zé tinha sido meu professor no Colégio Atenas, deu- -me vários livros de presentes, entre eles o Pensamento vivo de Karl Marx. A nossa conversa precisaria ser transformada em livro para que tudo pudesse ficar registrado e estudado por jovens que sonham com uma sociedade mais justa. É verdade que o discurso difere da prática. Aquele professor, entretanto, fez-me ver o quão é importante a participação de cada pessoa no processo de transformação do mundo em que vivemos. Não se trata da história do beija-flor diante da floresta dominada pelo incêndio. Falei, por exemplo, da minha insatisfação com o magistério e da necessidade que eu tinha de ajudar minha mãe e meus irmãos. Precisava de dinheiro, e um milhão de dólares pelo serviço era uma quantia tentadora, que poderia resolver os meus problemas e mudar o rumo da minha vida.

-Não pense só em você – repetiu insistentemente o velho Mestre -, nossas aspirações precisam ser coletivas não se muda uma sociedade com projetos individuais, ainda mais dessa natureza. Posso até entender sua situação, mas não consigo aceitar você deixar-se fazer instrumento para pôr fim ao projeto de poder com o qual todos nós sempre sonhamos: eu sempre sonhei com isso, você sempre sonhou com isso, o Aluísio sempre sonhou com isso, a Arminda nem se fala. Esse pessoal joga pesado, usa os recursos de que dispõe para impor o medo, o terror e perpetuar-se no poder. Esta é a nossa grande chance!

-Mas por que um de nós? – perguntei.

-Porque – retrucou – querem que nós mesmos nos destruamos. Para eles, seria muito fácil contratar uma outra pessoa, por exemplo, alguém de fora para realizar o serviço. Mas não, querem que seja alguém que compactue com as mesmas ideias, os mesmos sonhos e que tenha o mesmo sentimento de mudança, mas mudança de verdade, não essa que eles vêm pregando de forma cínica e leviana, aliciando pessoas como você que, por necessidade ou por mudança de princípios, aceitam fazer o jogo sujo que lhes é peculiar. Coloque uma coisa na cabeça: nunca mais teremos uma oportunidade como esta para tomar o poder, e pela via democrática, pelo voto popular, pela conscientização de pessoas que não aceitam mais esse estado de coisas.

De volta para casa, as palavras do mestre Zé misturavam-se com a conversa das pessoas dentro daquele coletivo. No percurso até o Bairro dos Laminados, muitas coisas me passaram pela cabeça. Estava envolvido até o pescoço com aquela gente perigosa e com leis próprias. O que fazer? De- nunciar tudo à polícia e virar um herói morto depois de uma manchete nos jornais de domingo, ou simplesmente sumir do mapa, fugir para um outro estado e mudar de identidade? Seria esta a saída mais sensata?

Parece que fui conduzido para dentro daquela organização com um objetivo específico: feito o serviço, passaria a ser uma carta fora do baralho, talvez desovado na Estrada do Quequara ou nas vicinais da Avenida Rio Negro. Cheguei à conclusão, por exemplo, de que fugindo estaria mais perto da minha velha mãe. Ela, por sua vez, seria a primeira vítima de minha decisão de não realizar o serviço, de recusar um milhão de dólares, de preferir a mudança com que sempre sonhei a uma proposta criminosa. Além de José Raimundo, apenas Sandra conhecia meu problema. Foi ela quem me propôs proteção em Belém, onde seria seu ajudante na banca de artesanato. Esquecia-se, todavia, de que a máfia não tem naturalidade e muito menos nacionalidade. Atua em qualquer lugar e usa de todas as formas para aniquilar concorrentes e desertores.

Júlia seria a única pessoa que me poderia ajudar, fazer o comandante Douglas mudar de opinião e encarregar outro integrante para a execução do serviço. Mas onde encontrá-la? Tornou-se, desde que desapareceu do colégio, uma mulher inacessível. Para ser sincero, nunca mais a vi. O próprio Ernandes tinha desaparecido, mudado de endereço e não retornava as ligações de um telefone público. Parece que não tinha outra alternativa, que estava com as mãos e os pés amarrados. O pior de tudo é que não havia mais a quem recorrer, pois não podia sair batendo à porta dos amigos para dizer que era envolvido com o tráfico e, ao mesmo tempo, pedir proteção.

Aquela senhora estava mesmo envelhecendo. Sua casa sempre teve a sua cara: as plantas, o canteiro de cebolas e de cheiro-verde aos fundos, o cercado das galinhas, enfim, seu mundo e seu universo. Apenas um neto servia-lhe de companhia. É, apenas um neto! Isso parece fazer parte da cultura ocidental: os filhos crescem, casam-se, desaparecem. Conhecia várias histórias semelhantes à de dona Cleonice. Um colega de faculdade sempre me falava de sua avó. Dona Maria teve, dizia, oito filhos, porém nenhum lhe dava a devida atenção. Moravam todos longe. Uma passou mais de vinte anos sem dar notícias. No dia final telefonou chorando e pedindo passagem para ir ao enterro. Morava em Belo Horizonte. Para essas pessoas tudo fica muito mais horrível com a viuvez que traz consigo a solidão e as lembranças. Com aquela senhora não foi diferente: Tomé, isso mesmo, Tomé, nome de apóstolo, era o homem da casa, acompanhava-a ao banco no dia do pagamento da aposentadoria e carregava os objetos mais pesados quando da pequena compra na feirinha do mercado.

Iranduba continuava a cidade que via quando criança: as mesmas ruas, os mesmos buracos. Somente as pessoas mudaram. Estavam mais velhas, e isso era culpa do tempo que transforma até mesmo as imagens do céu.

Há anos não via minha mãe.

Novamente a política voltou a ocupar os noticiários dos jornais. Seis nomes apareceram como candidatos a prefeito. Um, em particular, ganhou espaço na mídia: funcionário dos Correios, presidente regional do PSTB, estava lançando sua candidatura como alternativa às que estavam polarizando o quadro eleitoral. Faria campanha a pé ou, quando muito, usaria o transporte coletivo para deslocar- -se aos bairros periféricos. O seu discurso era de um mártir prestes a ser sacrificado.

O jovem deputado federal divulga a data da convenção partidária que homologaria sua candidatura. Seu vice seria um respeitado advogado criminalista e professor universitário; baixinho, cara de rato, discurso truncado e cheio de ideias pregadas nas aulas da faculdade.

O Ginásio Central e seu engarrafamento de todas as tardes seriam o palco para a grande festa da democracia. A imprensa esteve presente mais para testemunhar a ousa- dia do jovem deputado, que teimava em desafiar as forças políticas, do que para ouvir suas propostas. Não havia mais do que quinhentas pessoas naquela convenção. Tudo muito pobre e sem nenhum movimento de impacto que pudesse chamar a atenção do grande público. Aliás, a imprensa, no dia seguinte, destacou a revolta dos moradores do Bairro de São Judas Tadeu, que incendiaram ônibus para protestar contra o péssimo sistema de transporte coletivo desta cidade.

O Fato publicou, no dia seguinte, uma excelente reportagem sobre os acontecimentos. Uma foto estampada na primeira página mostrava a multidão, depredando ônibus nas proximidades da Bola do São Judas Tadeu. Os rodoviários. pararam as principais vias da cidade. Um deles foi preso, sem direito a habeas corpus. Restou-se aos solidários o discurso de improviso e de revolta. A Avenida Grande Circular foi tomada pelos moradores que, com faixas e gritos de protestos, exigiam mais respeito e não a visita das autoridades apenas às vésperas de eleições. Aliás, a cidade inteira também vivia uma crise de identidade, pois estava tornando-se sem lei e, consequentemente, sem ordem, sem autoridade, sem perspectiva. Vivia, talvez, o seu pior momento desde a de- cadência econômica. O povo, já diz um velho ditado popular, tem o governo que merece. Tudo era um verdadeiro caos: greve na saúde, os professores ameaçavam paralisar suas atividades por solidariedade àquela categoria, a centenária Santa Casa do Socorro estava fechando as portas, pois a Secretaria de Saúde há mais de três meses não repassava os valores do convênio firmado com o governo, e a centenária instituição não poderia continuar prestando serviço, sobrevivendo apenas do triste repasse feito pelo Ministério da Saúde. Lí, numa nota de rodapé, que a prefeitura estava contratando médicos cubanos para combater a epidemia de malária na invasão Santa Esmeralda. Por que médicos cuba- nos? E o Instituto de Medicina Tropical? Na sessão de cartas de O Fato, que nunca publicava o texto integral e suprimia as partes mais importantes, algumas pessoas protestavam contra a presença de médicos cubanos em detrimento dos respeitados profissionais da terra. A propaganda governamental, no entanto, mostrava uma outra cidade, com imagens do Bairro do Feudo, da Boulevard Costa e Silva e dos bailes no Hotel Central. Dizem que o mês de agosto é o mais temido por tudo de ruim que sempre acontece nessa época do ano; aquele mês de julho, entretanto, estava mudando os rumos da crendice popular.

É sábado, 5 de setembro de 1990, e uma multidão aglomera-se à porta do sistema carcerário para visitas. Confesso que nunca fui de esperar ninguém. Quem? Minha mãe não teria mais forças para vir de Iranduba, não suportaria, creio, ver o filho esperando uma sentença que já virou no- vela. Mas, para minha surpresa, o guarda anuncia a presença de uma pessoa que não mais esperava:

– Professor! O senhor tem visita.

– Trouxe papel para rascunho.

Era Carolina.

Continua na próxima edição…

*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

Views: 4

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques