
*Francisco Calheiros
Continuação…
O retorno de Júlia
Vestia-se à Sophia Loren. Manteve, entretanto, o modo de andar e de arrumar os cabelos. Ainda que a visse de forma rancorosa, estava linda. A fotografia estampada na coluna social não deixava dúvidas: era Júlia. A reportagem falava da inauguração de uma loja no único shopping center da cidade.
O interbairro me deixou nas proximidades do Olímpico Clube. O percurso levou mais de meia hora entre o ponto de ônibus e as proximidades do Sírio Libanês. O shopping ainda estava fechado ao público; consegui, no entanto, permissão e entrei pelo corredor do segundo andar. A loja era linda, e as roupas expostas à venda eram das mais famosas marcas do País. Uma moça, no balcão de atendimento, não me ajudou muito quando perguntei por Júlia. “Dona Bárbara – disse ela – só estará aqui a partir das 18 horas, momentos antes da inauguração”. Fiquei, ante a resposta, pensando uma série de coisas: seria mesmo Júlia? Bárbara seria seu novo nome? Por outro lado, tinha a resposta para a origem dos recursos usados na implantação daquele empreendimento.
Uma boa parte do dinheiro que circulava em Manaus vinha de atividades clandestinas por parte de políticos, de funcionários públicos corruptos e do narcotráfico. As aberrações estavam ali, na cara de todo mundo, desafiando as autoridades e a paciência das pessoas que vivem dentro da lei. Um dos maiores exemplos foi a construção de um prédio por um ex-deputado que nunca deixou de mamar nas tetas do governo. Proliferavam concessionárias de veículos de marcas famosas. A Djalma Batista, por exemplo, era um canteiro de atividades ilícitas, sem falar das mansões na área do Tarumã. Em síntese: pelas minhas conclusões, Júlia mudou de nome e, para esconder seu passado criminoso, estava usando também um outro visual e montando uma loja para lavagem de dinheiro vindo do narcotráfico. Não apareceu na inauguração, tendo sido representada por uma pessoa que eu não conhecia, talvez uma testa-de-ferro. Ela, Júlia, deve ter acumulado uma boa quantia como amante do comandante Douglas. Nunca foi, como já disse, vendedora de uma loja no Bairro dos Laminados, em Vila da Barra. E agora, para a capital, ela havia-se mudado com as mais diversas intenções, exceto levar uma vida fora do crime, porque, como sabemos, esse é um mundo do qual só se sai morto.
Foram semanas tentando encontrá-la. Para a minha surpresa, fui procurado por ela naquela sexta-feira de setembro, exatamente há um mês das eleições. E, por falar em eleições, o clima em Manaus não era muito diferente. Aliás, pareciam uma única cidade, apenas com lugares e personagens diferentes. Encontrou-me, escondido, em uma casa no Bairro do Coroado III, mais precisamente na Rua São Pedro. Nossa conversa foi ríspida, quase a espanco quando a vi ali, na minha frente, falando de um relacionamento que só me trouxe desgraças. Somente hoje reconheço que fui um homem fraco, até mesmo imbecil, ao me deixar conduzir por uma mulher que me seduziu pela cama, às vezes nem cama havia, pois cansamos de se conhecer no chão daquela casa de madeira, entre os manuais de literatura e gramática. Seu cinismo, naquele fatídico reencontro, foi assustador. Ofereceu-me dinheiro para fugir do País com a maior naturalidade do mundo. Viveria bem em qualquer lugar dos Estados Unidos ou da Europa. “Esquecerás todos esses problemas que também me fazem sofrer”, disse.
E quem era ela para falar em sofrimento? Conhecia, por acaso, alguma coisa de solidariedade humana? Por que se envergonhava dos pais que moravam em Manacapuru, aposentados, doentes, o pai com debilidade mental? Mas, como diz o ditado popular, o mundo dá muitas voltas. E deu. Hoje sei que ela vive no Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro há um bom tempo. Não suportou ver o pai registrado como indigente naquele necrotério. Quando soube do caso, passei a acreditar ainda mais na crença popular de que aqui se faz e aqui se paga.
De volta ao apartamento na Morada do Sol. no Aleixo, acompanhou Bárbara, sua companheira, (isso mesmo, sua companheira, pois Júlia havia assumido sua condição de homossexual) em uma visita a um parente no Hospital 28 de Agosto. Por pura curiosidade, com mais de meia hora de espera, resolveu entrar na área do necrotério. Um a um, levantou os lençóis que cobriam os corpos esperando remoção para o Instituto Médico Legal, ou liberação para as famílias. Um rapaz vítima de arma branca, uma senhora de quase setenta anos, um menino de dez, um senhor, cuja idade era impossível precisar. Foi, entretanto, no último gesto que lhe veio o susto. A manta mortuária foi sendo levantada. O cadáver de seu Lázaro estava ali, há mais de uma semana, à espera de reconhecimento por parte da família. Doente mental, fugiu para Manaus em um caminhão da olaria.
Um grito de desespero soou por aquele recinto hospitalar. Júlia correu, desesperadamente, em direção à porta. Voltava à pedra do necrotério, olhava para o cadáver do pai, chorava, chamava pelo nome de Deus, ajoelhava-se, rezou aos gritos um Pai Nosso, correu novamente à porta de acesso e, atropelando um funcionário da limpeza, seguiu em direção à rua de trânsito rápido, que passa em frente ao hospital. O meio-fio foi o obstáculo que lhe salvou a vida, impedindo-a, num gesto impensado, de atravessar a pista e ser esmagada por um caminhão. Um rapaz carregou-a até o banco de cimento em frente ao hospital. Ela, em estado de choque, ainda gritava o nome do pai, balbuciava palavras sem nexo. Muitos meses depois, uma correspondência, com os mesmos erros de português, chegou-me neste presídio. Pensei, numa eventual liberdade, em visitá-la naquele hospital.
Disse-lhe, como resposta àquele conselho medíocre, que ela também ainda iria sofrer as consequências do seu envolvimento com aquela gente. Fui grosso. “Perdi tudo, sua idiota. Tudo. Mataram meu irmão, incendiaram a casa de minha mãe, a minha casa, enfim, destruiu a minha vida”, foi a reação quando ela tentava aproximar-se de mim quase que encostando os lábios no meu rosto. Empurrei-a. Dei-lhe uma tapa. Ela chora. Sua boca começa a sangrar. Uma arma retirada da bolsa foi colocada sobre a mesa de estar. De súbito, paradoxalmente, um forte abraço, seguido de um beijo, parece ter significado uma reconciliação. Propôs-me ajudar. Sabia de muita coisa. Detalhes. Caminhos. Segredos. Imaginava-me mais uma vez personagem de um daqueles filmes norte-americanos sobre violência urbana. E, mais uma vez, parece que as ações do Mestre José Raimundo estavam influenciando meu destino. E explico: todos os jornais da cidade, A Crítica, Diário do Amazonas, o centenário Jornal do Commércio, o mais recente, Amazonas Em Tempo, sem exceção, traziam notícias sobre as ações da máfia italiana que estava, inclusive, influenciando as decisões da política local e, consequentemente, provocando danos à lei. A mais recente bomba era a compra por um magnata suíço de milhões de hectares de terras no Alto Solimões a pretexto de preservar a floresta. E tudo com a conivência de alguns políticos locais. Um engenheiro agrônomo e deputado estadual, professor da Universidade do Amazonas, foi, se não me falha a memória, a única voz que se levantou contra aquele estado de coisa. Querem fazer com os brancos, pardos, mestiços e migrantes, que vivem e são filhos da Amazônia, o que fizeram e continuam fazendo com os índios desde o processo de colonização: expulsão sumária de suas próprias terras. E onde entra o Mestre José Raimundo em toda esta história? Elementar, meu caro leitor, estava tentando ajudar-me, uma vez que sua formação política não permitia que ele se limitasse a ser um mero espectador. Apesar de formado em História, pensava um dia em cursar Jornalismo, o que o levou a aproximar-se e a tornar-se amigo de importantes jornalistas locais. Afastou-se, por decepção, depois da morte de Luís Otávio, assassinado a tiros. Li, uma a uma, as reportagens dos jornais. A riqueza de detalhes me fez chegar à conclusão de que ali havia as mãos do Mestre.
Minha decisão foi repentina: precisava voltar. Mas voltar aonde? Havia alguma diferença entre Manaus e Vila da Barra? Tudo não passava de delírio da minha parte? Era um homem em conflito, sim, e precisava por isso criar uma forma de fuga da realidade. Nada melhor do que o contraste entre o real e o imaginário. Nada melhor do que navegar na imaginação, passar por mundos distantes, viver o belo ainda que momentaneamente, enfim, sair da rotina, da bestialidade que caracteriza a vida moderna.
Mas voltei. A campanha estava pegando fogo. Faltavam exatos vinte dias para as eleições. O candidato do Sistema usava a máquina do Estado, da Prefeitura e, em muitos casos, do próprio Judiciário, que fazia vistas grossas às infrações à frágil legislação eleitoral, às vezes parcial, muito submissa aos que detêm o poder econômico. Novamente me vinha à memória a passagem não sei se de Beiradão ou Banco de Canoa, conforme já argumentei, de Álvaro Maia, dizendo que “no Amazonas oposição jamais ganha quando há juiz pobre”. Será que a frase de efeito daquele político e intelectual amazonense iria concretizar-se? Acreditava, entretanto, no dinamismo da História.
Quem procurar? Soube, por alto, que o anedótico Fernando, aquele do Bar da Francisca, era um dos voluntários da campanha do jovem deputado federal.
O comitê eleitoral ficava em uma casa improvisada na Zona do Desterro. Novamente o interbairro me serviu de meio de transporte. A multidão que se aglomerava na entrada do comitê lembrava a procissão de São José Operário no dia dezenove de cada mês. A primeira impressão que tive era de que aquelas pessoas não passavam de pedintes. Não, não eram. Saíam do local com cartazes e materiais de campanha. Eram homens, mulheres, jovens, enfim, a faixa etária era o que menos importava naquele momento. Um verdadeiro exército voluntário que adentravam as ruas e becos levando o nome do jovem candidato às famílias e às pessoas que não acreditavam mais em nada.
O candidato a vice apareceu no local. Quase não consegue ser notado tanto pela estatura quanto pela discrição. Cumprimentou os presentes e saiu no corpo-a-corpo pela área comercial do bairro. As pessoas faziam o V da vitória, gritavam o nome do jovem candidato, apesar de alguma hostilidade por parte de determinadas criaturas. Na televisão, o plantão do jornal local anunciava a mais nova pesquisa eleitoral. A diferença, que chegou a ser de mais de cinquenta pontos percentuais, caiu assustadoramente. Isso era, todavia, observado ante a grande massa que passou a declarar o voto naquela proposta de mudança.
A manchete de O Fato reproduzia uma reportagem de A Crítica: o promotor que chamou para si as investigações houvera sido vítima de um atentado e estava à beira da morte em um hospital evangélico. O caso virou manchete no Jornal Nacional, da Rede Globo, que, por mais de cinco minutos, detalhou a grave crise institucional em que o estado se encontrava. A Ordem dos Advogados do Brasil, Secção do Amazonas, pediu intervenção federal. O governador, por sua vez, foi visto, com a mulher, as filhas e mais uma comitiva de trinta pessoas, almoçando em um restaurante de Paris, pouco se lixando para as ameaças que pairavam sobre seu pífio governo.
Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
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