
*Francisco Calheiros
Continuação…
Golpe Mortal
Não estaria ajudando muito se fosse para a televisão, no horário gratuito, denunciar as ameaças do narcotráfico. Seria até uma atitude prejudicial à candidatura do jovem deputado a presença de um professor com desvio de conduta no tempo destinado pela lei à apresentação de projetos para a população; usado, no entanto, para acusações e coisas desse jaez.
Precisava, outrossim, ir além do voto. Mas de que maneira ser mais útil? Foi quando Júlia me entregou um envelope com um roteiro de ações que deveriam por mim ser seguidas. Era uma espécie de dossiê contra o crime. Uma verdadeira preciosidade para a Polícia Federal e para a Interpol.
No calhamaço, havia de tudo: número de contas bancárias, inclusive em paraísos fiscais, como as Bahamas, nomes de empresas de fachadas. O que mais me chamou a atenção, no entanto, foram os nomes de políticos que recebiam dinheiro. “Isso é uma prova do meu amor”, disse-me Júlia. Respondi-lhe que na consciência de quem mente não há espaço para sentimento.
– Só quero ajudar – gritava. Será que não posso ser útil mais em nada, além da cama? Porque esse tratamento injusto, sim, injusto, porque estou sendo verdadeira. Tudo bem que, no passado, fui o que fui, fiz o que fiz, agi da forma que agi. Mas hoje, não, hoje quero ajudar, contribuir com a verdade e, de alguma forma, corrigir um pouco dos meus erros.
O problema é que não acreditava naquela mulher. Suas palavras, mesmo diante de toda aquela papelada, ainda levantavam suspeitas. Afinal, aquele dossiê era verdadeiro, ou tudo não passava de algumas páginas que para nada serviam? Uma coisa era certa: poderia entregar o material para a pessoa certa: o promotor que aceitou apurar as denúncias. Precisava para isso voltar a Manaus, onde ele estava internado, recuperando-se do atentado de que foi vítima. O hospital Adventista, no Distrito Industrial, mais parecia um quartel geral, visto que inúmeras eram as viaturas de polícia ali estacionadas. Na entrada principal, dois federais armados só a entrada de pessoas autorizadas. Diante desse cenário totalmente desfavorável, como chegar ao promotor? Como entregar o dossiê?
Aquela moça, vestida de branco, não me era estranha. Conhecia-a da Vila da Barra, era filha da dona Aparecida. Foi para capital com o propósito de cursar a Faculdade de Enfermagem. E, para a minha sorte, estava ali, na minha frente a hora e no momento exatos.
Aproximei-me do balcão como quem queria uma informação. O federal, com a cara de malvado, olhava-me, fez sinal de aproximação, mirou-me dos pés à cabeça e, como não viu sinais de anormalidades, voltou as para as atenções para pessoas que adentravam no recinto. Depois de muito custo, Márcia aceitou entregar o envelope. Anexa às avulsas, uma carta escrita ali, sobre o balcão, na qual de forma objetiva pedi que levasse as investigações até o fim. Do ponto de ônibus, vi, no quarto andar do prédio principal, uma mão acenando positivamente. Só poderia ser o promotor. Só poderia ser o promotor.
As seis páginas do caderno de polícia de A Crítica foram suficientes para tanta denúncia. A reportagem praticamente reproduziu as denúncias que me foram entregues por Julia. Número de contas bancárias, doações de empresas a polícia em campanhas sem o devido registro no Tribunal Regional Eleitoral; enfim, o promotor, mesmo impossibilitado de andar, mas protegido por um forte esquema de segurança, como se diz na linguagem popular, descascou o abacaxi, ou seja, confrontou suas investigações com as da Polícia Federal, com as da interpol e acabou dando um cheque-mate na alta cúpula da organização criminosa. Seu nome? Francisco. A repercussão foi imediata e atingiu em cheio os interesses dos poderosos.
Malgrado o Nação ainda vivesse sintomas do autoritarismo do golpe militar de 1964, com as instituições acanhadas, meio imbecilizadas, sem iniciativa própria, meros elefantes brancos sem nenhuma finalidade aparente, há mais de dez anos a Polícia Federal não fazia uma operação daquele porte. Os jornais, inclusive O Fato, meio tendencioso, estamparam, na primeira página e com letras garrafais, a prisão de mais de quarenta pessoas, entre políticos, donos de concessionárias de veículos, donos de casas de câmbio. Alguns, como é de costume, tentavam esconder o rosto para com isso esconder também a vergonha.
Foi nesse período em que vi Júlia pela última vez. A escola Elda Bitton Telles da Rocha, na Compensa III, foi o nosso ponto de encontro, ali, bem próximo a uma creche abandonada. Com o jornal das denúncias nas mãos, ela implora que eu desapareça, vá para Belém, para qualquer lugar onde pudesse estar mais seguro. A seguir, chorou, fez uma retrospectiva da vida dela, do tempo em que nos conhecemos; lembrou detalhes das nossas noites entre os manuais de literatura e gramática. Hoje avalio que todos aqueles acontecimentos estavam anos-luz de afetar de morte o braço da máfia italiana implantada no Amazonas. Mas se principiava uma reação. Dali, Júlia seguiu para o Hospital 28 de Agosto acompanhando uma amiga a uma visita a um aparente.
O governo brasileiro sempre fez vistas grossas à presença de organizações não governamentais implantadas na região, nunca criou regras para os ditos pesquisadores (não seria nenhuma ofensa chamá-los de pseudocientistas) que, na verdade, apenas querem contrabandear exemplares raros da biodiversidade local. A pretexto de estudar, por exemplo, os primatas. remetem para fora do País informações preciosas sobre o nosso banco genético; muito pelo contrário, com sua política sem planejamento, ainda acaba financiando determinadas entidades com objetivos dos mais suspeitos. Assiste-me ainda afirmar, com todas as letras, que o plano daquela organização criminosa era, pari passo, num período de vinte anos, assumir o controle da região, seja comprando terras, seja se infiltrando na política local, seja subornando autoridades dos mais diversos setores do estado.
“Vai embora” Foram as últimas palavras de Júlia, que ainda encontrou os lábios no meu rosto. Custa-me dizer que outro lado da rua estava Carolina, que a tudo assistia. Não posso precisar se Júlia a viu. Creio que sim. Pela vez tinha as duas ali, na minha frente, ainda que num momento de definições.
Carolina trazia consigo algumas apostilas do curso supletivo. Sempre dedicada, sempre fixa nos seus propósitos, sempre honesta, sempre boa. Essa bondade não era propriamente a mesma da Madalena do romance São Bernardo. Essa adjetivação ia além das qualidades morais. Era um dos seus maiores atributos quando se tratava de uma cama. Era um errado até no amor. Por Júlia tinha uma verdadeira obsessão, paixão, tesão e amor. Por Carol um sentimento fraternal, que foi mudando depois que me encontrei aqui jogado neste cárcere, à espera de uma sentença. Como fede esta prisão! Agora, há mais de um mês não sei o que é uma mulher. Como fede esta prisão! Quando serei sentenciado?
Numa crise de choro, Carolina joga as apostilas no corre em direção à parada de ônibus, quase sendo ada por um daqueles taxistas que nunca respeitam as leis de trânsito. Não tive escolha. Entre o amor e o sentimento, optei pelo sentimento, sendo a distância observado por Julia.
Alcancei-a quase que sem fôlego. Ela não me encarou. Num misto de palavras e lágrimas, comunicou a morte de minha velha mãe. Acabava de perder a mulher que me havia criado, que me adotou como filho. Um universo de reminiscências passou naquele momento por minha cabeça.
Não queria saber do presente. Apenas o passado, naquelas circunstâncias, poderia manter-me com alguma disposição para luta.
Filho de uma mãe solteira, ela me levou consigo ainda na fase de aleitamento. Com a experiência de ter criado educado mais de dez filhos, usou o conhecimento adquirido com o tempo para me dar o necessário. Sua velha casa de madeira foi o nosso palácio até o momento em que mudei de cidade. O mingau de tapioca era minha refeição predileta. Sempre pedia bis. Sempre a abraçava no dia das mães e, no dia dedicado às crianças, sempre ganhava, de acordo com as suas possibilidades, alguma coisa, um brinquedinho que fosse. Tornei-me adulto e acompanhei seu processo de envelhecimento, suas reclamações acerca dos filhos que não davam notícias. Pensei que o magistério fosse possibilitar-me meios para, de alguma forma, socorrê-la nos momentos de dificuldades. Os poemas de Manuel Bandeira me vinham à cabeça, principalmente aqueles em que ele cita as pessoas que fizeram parte de sua infância, de seu universo pueril. Totonho Rodrigues, Aninha Viegas. No meu caso, Vitória, seu Paulo e D. Raimundinha.
Depois da morte de Tomé, passou a não ter mais ninguém, pelo menos fisicamente, ali próximo, para as emergências que a velhice sempre nos proporciona. “Deus te proteja, meu filho”, foram as últimas palavras que ouvi de sua boca. Na igrejinha do bairro, poucas pessoas. As velhas comadres, alguns parentes distantes. E nenhum filho. Voltei do cemitério Parque da Saudade, onde a enterramos ao lado de Tomé. Mãe e filho, juntos, para sempre unidos e também para sempre separados da materialidade da vida moderna.
E Carol sempre presente.
Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
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