Manaus, 17 de junho de 2025

Quadro Negro

Compartilhe nas redes:


*Francisco Calheiros

Continuação…

PARTE III

Velhos expedientes

A fraude eleitoral, pelo menos nos últimos cinquenta anos, tem caracterizado o resultado das eleições. A descoberta de urnas adulteradas em um depósito da prefeitura comprova minhas afirmações. Se o prezado leitor ainda se lembrar do caso daquele deputado que dormiu senador e acordou derrotado, não poderá estranhar o que estou dizendo.

Mais de dois mil títulos de eleitor foram encontrados num igarapé da cidade. O Estádio Municipal foi o local escolhido para a distribuição de cestas básicas ante a apresentação do cartão “Direito à Mesa”, espécie de senha que dava direito a alguns quilos de feijão, com charque e arroz. Uma multidão amanhecia em filas quilométricas que serviam de imagens para as peças publicitárias do governo, fingindo estar fazendo muito por uma sociedade doente e, acima de tudo, faminta. Alguns fiscais do Tribunal Regional Eleitoral, que bravamente resistia às flagrantes violações à lei eleitoral, ainda subsistiam à falta de estrutura para coibir o uso da máquina pública a favor do candidato do Sistema. O juiz eleitoral, talvez influenciado pelo promotor Francisco, realizou algumas diligências a comitês eleitorais, nos quais encontrou uma grande quantidade de cestas básicas para serem distribuídas no dia da eleição. A Polícia Federal, uma das poucas instituições que ainda funcional neste País, deteve um bimotor com malas de dinheiro destinado a candidatos do chamado bloco governista.

– Eles jogaram pesado – foram as palavras que ouvi do anedótico Fernando, que ajudava a coordenar uma frene voluntaria no Bairro dos Laminados, na verdade. O candidato do Sistema estava recrutando um verdadeiro exército para o dia da eleição, esquema conhecido como boca-de-urna. São pessoas que ficam nas esquinas tentando influenciar o voto de quem se dirige às seções de votação. Oferecem de tudo. Dão fretadas para essa finalidade. Um candidato a vereador e dinheiro. Fazem transporte gratuito nas centenas de kombis filho de um deputado estadual, que na última eleição foi para algo parecido: transporte gratuito, uma camisa pintada acusado de abuso de poder econômico, estava preparando-se com a foto e o número de candidato e mais uma quantia em dinheiro. A frágil democracia brasileira estava prestes sempre preparada para submeter os analfabetos políticos a ser novamente vítima de uma perversa hereditariedade,

seus projetos pessoais.

Hoje, levo mais a sério a frase daquele famoso pensador que diz que o pior analfabeto é o analfabeto político. Continuaremos, por várias gerações, votando mal, elegendo representantes das oligarquias e aceitando tudo passiva- mente. Sinto que ainda teremos um representante da classe operária no comando desta terra. O mundo haverá de se curvar a um trabalhador presidente do Brasil discursando na abertura da Assembleia das Nações Unidas, e em português. A revista Veja desta semana, segundo o jornal da semana passada que me foi emprestado pelo novo sentinela, fala do jovem governador de Alagoas, caçador de marajás, que está organizando um partido para disputar a primeira eleição direta para presidente da República depois de mais de vinte anos de regime militar.

Paralela à visível fraude eleitoral que estava sendo orquestrada, uma forte propaganda governamental inundava os veículos de comunicação. Milhões estavam sendo gastos para implantar no imaginário popular uma realidade virtual. Mais uma vez as máquinas do município e do estado estavam sendo usadas a favor do candidato do Sistema, que continuava sendo protegido pelas falsas pesquisas de intenção de voto. Uma eventual derrota seria um golpe mortal nos interesses dos que sempre viveram à sombra do Estado, usando a máquina pública para enriquecimento ilícito por meio de empresas de fachadas.

Nas escolas, o clima era de terror. Independente da situação funcional, todos passaram a ser ameaçados por vá- rios diretores de escola. A diretora da Unidade, aquela loura com cara de macaco, procurava implantar as mesmas práticas nazistas. Com total afronta à legislação eleitoral, reuniões eram feitas nas dependências das escolas com a finalidade de pressionar os profissionais da educação a votarem no seu candidato. Os professores temporários eram as maiores vítimas. O número dos títulos eleitorais era relacionado em uma lista negra que, segundo diziam, seria confrontada com o boletim da seção eleitoral, o que possibilitaria saber quem votou ou não no candidato indicado.

O discurso, no começo, era brando, de envolvimento emocional, cheio de contradições mediante a falência da educação no Estado. A pressão consolidava-se a partir do momento em que a pseudoemoção era substituída pelo autoritarismo, chantagem, ameaça de rescisão de contrato, enfim, práticas das mais absurdas jamais admitidas num estado democrático de direito. Alguma reação?

Sim. O professor Ferreira, que soube assimilar muito bem os ensinamentos de Aluísio e de Arminda, não só por ser estatutário, mas também por sua formação ideológica, foi, na Escola Professor Agnelo Bittencourt, um foco de resistência. Em sala de aula, seu discurso era de um sindicalista em cima de um carro de som na porta de uma fábrica. Metido a poeta, seus versos passaram a ser cantados pelos alunos na saída e na entrada:

Governo que não respeita

aluno nem professor

pode ter tudo no mundo

mas não tem o nosso amor.

Conhecia o professor Ferreira como profundo conhecedor da disciplina que lecionava; não o conhecia, entretanto, como um intelectual influenciado por Victor Hugo ou Ferreira Gular. Mas aqueles versos, sendo ou não de sua autoria, viraram hino na primeira manifestação pública realizada no Bairro da Compensa. A Rua São Pedro foi o roteiro escolhido pelos alunos do turno vespertino. Com cartazes, faixas. Um velho carro de som emprestado pelo seu Anastácio, proprietário de uma oficina mecânica, foi o veículo de comunicação que levou o discurso para todos os moradores da redondeza. No percurso, vários populares aderiram ao movimento. Os vendedores de peixe, na feirinha do bairro, gritavam palavras de ordem. Nas proximidades da Feira do Bagaço, o grande encontro entre os alunos da Escola Elda Bitton com os alunos da escola Agnelo Bitencourt. O professor Ferreira, à frente, era o az que liderava o movimento.

O ponto alto foi a multidão cantar aqueles versos como quem partia para a guerra. Até os jornalistas presentes integraram-se à passeata que percorreu toda a extensão da Avenida Brasil e, por um percurso de mais de quinze quilômetros, chegou ao centro da cidade. O ponto de concentração foi o Olímpico Clube.

– Esses versos são seus? – perguntou Ferreira, acompanhado de Fernando, o professor Gonzales e de toda a turma que se reunia no Bar da Francisca. Carol, logo atrás, estendia os braços para segurar na minha mão. Respondi-lhe em tom de discurso.

– Não. São do Mestre.

A mim me cabe esclarecer que o mestre a quem me referia não era José Raimundo, mas o autor de Trilha d’água, que, da sua casa inacabada no Bairro da Alvorada, acompanhava tudo de perto. Sim, aqueles versos eram dele em coautoria com um desconhecido poeta itacoatiarense que nunca pôde publicar seus escritos. O mestre tinha um pouco do social de Victor Hugo e Ferreira Gullar, conquanto sua poesia fosse mais voltada para a temática amazônica. O caboclo interiorano historicamente viveu na miséria, e sua poesia denunciava essa condição.

Mas em meio àquela tertúlia assistimos à chegada da Polícia Militar, que acompanhava tudo de perto. Foi, por sua vez, a tropa de choque que partiu para o ataque. O professor de Agronomia e deputado estadual foi violentamente espancado. O baixinho professor de História e candidato a vereador foi jogado em um camburão. Quando todos pensaram que a multidão iria dispersar-se, voltou-se contra os policiais e iniciou uma batalha campal digna dos conflitos na Faixa de Gaza. À medida que os soldados avançavam, alunos, professores e populares partiam para cima da cavalaria. Foram mais de duas horas de conflitos. O resultado de tudo foi um percurso de mais de dois quilômetros manchado de sangue.

Parece que, pela primeira vez, os velhos expedientes, as mesmas práticas de pressão e autoritarismo, tudo de mais abusivo e violento tinha uma resposta à altura. Pelo menos essa geração estava sendo diferente das anteriores, que foram muito submissas, nada reivindicaram, nada fizeram de construtivo para a melhoria do precário ensino público do qual tantos foram vítimas. Passaram a vida dormindo.

A cobertura da imprensa foi decisiva para que o episódio alcançasse repercussões gigantescas. O Jornal Nacional, na narração de Cid Moreira, noticiou o fato. Pronto. A partir daí entram na luta as entidades de direitos humanos, a Ordem dos Advogados do Brasil, O Ministério Público, uma vez que ainda havia, acredite quem quiser, instituições preocupadas em combater e denunciar a flagrante violência existente no Estado. Quem se manteve à margem dessa conduta foi o governo, que, utilizando-se do aparelho repressor de que dispunha, desenvolveu uma sórdida campanha de desmoralização da Associação Profissional dos Professores do Amazonas, rescisão dos contratos temporários de todos aqueles envolvidos no movimento.

Dos que eu conhecia, minha filha, apenas o professor Ferreira não foi, por ser estatutário, vítima de maiores arbitrariedades. A loira com cara de macaco, no entanto, ainda o ameaçou com um inquérito administrativo. Mesmo assim, foi retirado da sala de aula e colocado à disposição da Secretaria de Educação. Soube depois que mais de duzentos professores tiveram seus contratos cancelados. O Estado, até hoje, nunca indenizou esses profissionais nem sequer recolheu o tempo de serviço para fins de aposentadoria. E a menos de uma semana das eleições, a lavagem cerebral continuava.

Continua na próxima edição…

*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

Views: 4

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques