Manaus, 20 de junho de 2025

A senhora, o folclore e o festival

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*Éder de Castro Gama

CAPÍTULO 1

Continuação…

Os festejos de Serpa e a sua relação diacrônica

Entender os festejos de Nossa Senhora do Rosário, nos faz a todo momento estabelecer pontos que nos fazem revisitar o passado, numa relação diacrônica, onde o tempo não se põe de uma forma sincrônica numa linha temporal, mas se estabelece em si mesma, constituindo-se como um patrimônio cultural local de natureza imaterial. O intangível constitui-se na memória das pessoas que realizam os festejos, às vezes marcada pelo esquecimento, mas se tornando tangíveis no momento que são incentivados a fazer a festa, compartilhando com as novas gerações suas práticas e fazeres.

Texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

Valsa para Nossa senhora do Rosário.

Autor: Seu Didico (músico popular de Itacoatiara).

Arranjo: Adalberto Holanda.

Itani (2003) ao refletir sobre a importância das festividades para um povo, salienta que as festas não fazem apenas referência à sua história, “mas também da consciência de seus direitos e usos costumeiros (…)”. Portanto, “elas subsistem como parte do processo de transformação das sociedades, como bases em suas relações de produção e de seu processo de criação diante as condições novas que enfrentam, tanto religiosas como econômicas e climáticas”.

As transformações políticas e econômicas que a cidade e a Igreja de Itacoatiara vinham passando, iniciada em 1914 com a imigração estrangeira, “estabelecendo-se na cidade e no interior, levas e levas de colonos espanhóis, italianos, sírio-libaneses e judeus vêm se juntar a grupos de outras nacionalidades, além dos nacionais nordestinos” (SILVA, 1999, p.153-154), estabelece inclusive a mudança dos festejos do Rosário. Ainda Silva (1999), comenta que os festejos do Rosário eram comemorados no primeiro domingo de outubro até 1946, quando por determinação da chefia do Bispado, passou para o Dia de Todos os Santos, 1º de novembro.

A fim de ilustrar os festejos realizados no início do século XX, mais precisamente no dia 05 de novembro de 1908, sob o título “Religião”, o jornal “Paládio” descreve:

Com admirável brilhantismo, encerrou-se domingo último a festividade em louvor à virgem do Rosário, nossa padroeira, da qual eram juízes o sr. Miguel Francisco Cruz Junior e a senhorita Nunuca Cruz. Pela manhã d’aquelle dia teve lugar a missa cantada perante desusada concorrência. À tarde, às 5 horas, saiu a procissão que percorreu a praça 13 de Maio, travessa do Mercado, rua Visconde do rio Branco, a rua Ruy Barbosa, travessa 7 de Setembro, rua Silverio Nery, travessa Benjamim Constant, rua Quintino Bocayuva, travessa 15 de Novembro, rua Saldanha Marinho e praça 13 de Maio, recolhendo-se a igreja pouco ante de seis horas. A noite teve lugar a benção do Santíssimo e leilão, sendo queimado vistoso fogo de artifício quando estava quase terminando o leilão. – Quer na missa, quer na procissão, vimos ricas toilettes ostentadas por gentis senhoritas o que vem provar o bom gosto que reina entre a nossa (…) população: – Durante toda a festa, não houve um só distúrbio no arraial, inconcussa prova do nosso adiantamento moral. – Essa festividade veio no dar mais uma vez o ensejo de conhecermos quanto necessária a construção de uma nova igreja. – A nossa matriz além de velhíssima não suporta o povo de Itacoatiara. Nos últimos dias da festa, via-se senhoras ajoelhadas até a porta principal da igreja por ser esta pequena. Convém aproveitar a boa vontade do atual vigário para levar-se avante tal ideia cuja realização é de palpitante necessidade. – Igreja estava muito bem ornamentada interiormente; o arraial, todas as noites eram iluminados por numerosos bicos de gás acetileno, bem como o pavilhão onde a banda musical 05 de setembro todas as noites fazia ouvir peças de seu repertorio. – O juiz da festa para o próximo, é o sr. Floriano Eleuterio Mendes.

Este relato é importante, porque nos revela a estrutura montada em torno da festividade do Rosário, com a identificação dos juízes da festa que finda, (pessoas responsáveis pela organização e coordenação das festas), que assumem o papel de grande divulgador e donatário. Neste caso específico, a figura do Coronel Miguel Francisco da Cruz Junior, ou Coronel Cruz, como era popularmente conhecido, administrador da Mesa de Rendas, Intendente e Comissário Executivo (espécie de superintendente) e Presidente do Partido Republicano Conservador – PR14. E dos juízes da próxima festividade o s.r. Floriano Eleuterio Mendes15.

Demonstra o percurso da procissão que, dependendo da época, muda todo o seu trajeto por decisão da coordenação. Mostra a preocupação em se manter a ordem no arraial sem arruaças de jovens ou bêbados, uma vez que a festa do Rosário era um momento de grande efervescência social, onde as pessoas aproveitavam para exibir-se com suas melhores roupas. À noite, o arraial contava com a iluminação a gás, demonstrando preocupação para com a iluminação pública16 e denuncia a necessidade de construção de uma nova igreja para comportar a população da cidade, que estava em vias de crescimento dada à migração e imigração.

As edições do jornal Paladio, do ano de 1908, nos demonstra o quão animado eram as festas do Rosário, inclusive com a divulgação dos Juízes e Juízas da festa e do mastro. É importante esclarecer que, tradicionalmente, o mastro tinha um papel fundamental na festa. O mesmo consistia em um tronco de madeira de dois a três metros de altura, enfeitado e coberto com frutas, doces e brindes, que era posto no primeiro dia da festa e derrubado no último dia à base de machadadas, em um ritual onde os notários da cidade e da festa eram convidados para dar uma machadada até que o mesmo caísse ao chão.

O povo ficava ao redor para apanhar os brindes, pegava mais brindes quem fosse mais forte e esperto, tanto que o jornal Paladio noticiava “tenho visto que goladores esperam a queda do mastro de mãos p’ra o ar, e depois de apertarem-se contra a botija, vão para o mais próximo esconderijo dar consumo áquelle manjar que por 08 ou mais dias esteve à mercê do sol, chuva e sereno”. Itani (2003) comenta que o mastro não carregava unicamente valores religiosos, mas também costumes do calendário agrário. A autora nos demonstra que no Sul do Brasil o ano agrícola termina em junho, e essas celebrações também marcam o fim da colheita. Por isso, colocar produtos da colheita, como milho, feijão e frutas no alto do mastro é uma recreação das oferendas pagãs.

Sobre o calendário agrícola-religioso do Amazonas, Mario Ypiranga Monteiro (1983) elaborou um de forma experimental, dividindo o tempo entre o solstício de inverno e o solstício de verão, onde, por exemplo, o mês de janeiro faz parte do solstício de inverno, marcado pela mudança de temperatura, onde as principais festas na década de 60 do séc. XX eram as Festas de Reis, São Sebastião, marcado pela colheita da mandioca, macaxeira, bata, juta e pesca. Enquanto que o solstício de verão, marcado por um verão forte no mês de outubro, está relacionado ao mês da festa do Rosário em Itacoatiara, São Francisco das Chagas, plantio do tomate, colheita do maxixe, feijão, juta e pesca.

Nas observações feitas em 2003 sobre a festa do Rosário, não teve a colocação do mastro, e nem a figura explicita dos juízes da festa e do mastro. Ao analisar as festas de Santo em Itá, Galvão (1976) nos demonstra a importância que estas figuras detinham na estrutura social da festa, bem como o papel dos mordomos da festa. Para ele, existem duas categorias de juízes: o do “mastro” e o “da festividade”. O juiz do mastro patrocina o primeiro dia da festa, marcado pelo levantamento de um mastro votivo em que se hasteia a bandeira do santo. “Após a cerimônia do mastro, realizada à tarde, segue-se uma ladainha e então o baile, que não raro avança até o dia seguinte. Comida em abundância é oferecida aos convidados”. Já a figura do juiz da festa é responsável pelo “dia do santo, o auge das comemorações, a que acorre muita gente e exige maiores despesas. As festas duram dez dias, o tempo de uma novena, acrescentado da véspera quando se levanta o mastro”. E por fim, a figura do mordomo ou mordomos, “compete a custar a realização das ladainhas dos dias intermediários (…) nos povoados maiores, os mordomos também são chamados noitários. Estes arranjam com os amigos uma flauta e um cavaquinho para o modesto baile” (GALVÃO, 1976, p. 43).

É claro que a figura dos juízes da festa, do mastro e os mordomos foram substituídos por uma comissão organizadora, como já descritos sobre a Comissão da Festa de Nossa Senhora do Rosário de 2003. Assumem as mesmas funções das festas descritas no início do século e meados da década de 60 do século XX. É importante destacar a importância da festa do Rosário para arrecadação de dinheiro para construção da Catedral, em suas diversas obras e reformas.

O Jornal Itacoatiara. Semanário Independente Noticioso e de Propaganda, traz o título “Nossa Senhora do Rosário”. No dia 07 de novembro de 1928, comenta que houveram duas quermesses, uma de cunho social, realizada no “Botafogo Foot Ball Club” para arrecadação de dinheiro em virtude das obras da nova igreja, e a outra em benefício da festa que se realizava. Este fato nos mostra que a sociedade itacoatiarense, sobretudo os mais bem abastados economicamente, reuniram-se em um clube da cidade no qual eram associados, para realizar uma festa, ou seja, uma “kermesse” para ajudar na construção da igreja Matriz, e outra quermesse prosseguiu na frente da igreja para o restante do povo. Em 2003, o evento social Proclamação da Festa, realizada no mesmo Clube Botafogo, ou seja, há 75 anos atrás, já não se tinha uma divisão social clara estabelecida, foi mais democrática, pelo fato de envolver pessoas de todos os estratos sociais nas comissões da festa e no evento.

É importante estabelecermos a relação entre o sagrado e o profano na festa do Rosário, conforme as ideias de Durkheim (1996) já descritas, onde o sagrado estaria relacionado, sobretudo, às práticas que ocorrem dentro da igreja, como as missas, novenas, casamentos, batizados e etc. Esses conjuntos de ações constituem-se em ritos que reiteram a crença dos fiéis referentes a certos sacramentos da Igreja católica e são promovidos durante o mês de celebrações dos festejos do Rosário. As pessoas da cidade, do meio urbano e rural, aproveitam estes momentos ritualísticos para realização de casamentos coletivos, pagamentos de promessas através de oferendas como, por exemplo, doação de flores para ornamentação da igreja, de valores para compra de equipamentos de sonorização, de animais bovinos, caprinos e outros para mesa do leilão e do bingo festivo.

Mulher segurando guarda-chuva

Descrição gerada automaticamente

Coroação de N. S. do Rosário feita pelo Padre Miguel.

Pessoas com instrumentos musicais

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Coroação de Nossa Senhora feita por crianças.

Informativo da Festa distribuído no Lançamento da Festa do Rosário no Clube Botafogo

Uma imagem contendo foto, comida, jovem, grupo

Descrição gerada automaticamente

A Catedral de Nossa Senhora do Rosário, durante os festejos de 2003, virou ponto de peregrinação para visita do túmulo do Bispo Dom Jorge Marskell, falecido em 02 de julho de 1998. Ele foi o segundo Bispo de Itacoatiara, ordenado em 30 de julho de 1978. Segundo Ribeiro (2003, p. 221) ele teve uma participação ativa nos movimentos sociais, incentivando o povo a desenvolver a consciência política, como o apoio para destituição da Câmara e Prefeitura municipal de São Sebastião do Uatumã, em 18 de abril de 1994.

Na Pastoral da Terra, discutiu a eclosão dos movimentos sociais voltados para a problemática da terra e reforma agrária, em apoio aos cristãos da cidade de Manicoré-AM, com o problema da construção da Transamazônica. Promovia esclarecimentos a trabalhadores rurais sobre suas condições de trabalho e ações contra a pesca predatória. Na Pastoral Operária, desenvolvia ações de acompanhamento aos operários das indústrias que se instalavam na cidade de Itacoatiara. Na Pastoral Indigenista, buscou valorizar os povos indígenas através de sua cultura, valorizando e respeitando sus especificidades, e ainda em movimentos sociais que lutavam em favor dos Direitos Humanos e em prol dos encarcerados, buscando assistência médica e odontológica via Pastoral Carcerária.

Pode-se dizer que o Bispo Dom Jorge Marskell, tornou-se um ícone na cidade de Itacoatiara, por isso, justifica-se as inúmeras homenagens como depósito de flores, preces e orações que ele recebe, das pessoas advindas de todas as partes da Prelazia. A igreja é tomada pelos fiéis como um lugar sagrado, pois além da presença das imagens dos santos, o túmulo do Bispo e o “Santíssimo Sacramento”, representado pelo senáculo, é o lugar onde não se pode falar palavrões, namorar e usar vestimentas curtas, tomadas como indecentes.

Então, se o sagrado é tudo aquilo que está dentro do espaço físico da igreja (prédio) o profano é tudo aquilo que está fora dela. As atividades do arraial ocorrem na praça e na quadra de esporte Herculano de Castro e Costa, espaço onde ficam situados os barraqueiros com suas vendas de comidas e jogos de azar, consumo de bebidas alcoólica, bingo, rifas, apresentação de shows de bandas e danças coreografadas. Agora é claro, há momentos que o sagrado e o profano podem se misturar, como na realização das Procissões, Romarias e Missa Campal.

No Clube Botafogo, percebemos que as músicas sacras eram tocadas em conjunto com as músicas populares. No arraial, na “barraca da santa” ou “barraca da comunidade” são desenvolvidas atividades para arrecadação de dinheiro, mas os meios pelos quais isto ocorre, contrariam as leis do catolicismo ortodoxo, pois estes recursos advêm da venda de comidas típicas e bebidas e, às vezes, as pessoas acabam exagerando no consumo. A embriaguez, algumas vezes acabam por gerar confusão no bar da barraca da Santa, que passa a incomodar famílias que vão jantar em noites de arraial. É interessante notar que esta era uma preocupação que perpassava historicamente pelos administradores dos festejos e da intendência municipal. É evidente que os territórios entre o que é popular e o que é o erudito, sagrado e profano, não estão claros.

Tomando a ideia de Del Priore de uma “Festa dentro da festa”, de que na época da festa nas Colônias brasileiras permitiam a todas as camadas sociais a diversão, a fantasia e o lazer, além dos vários sentidos nas funções aparentemente irrelevantes da festa, podem existir diferentes motivos sociais característicos para grupos ou segmentos distintos de pessoas. Pode-se observar que na festa do Rosário a interação, o lazer, a diversão e fantasia de todas as camadas sociais estão presentes. Tomemos como exemplo, a participação das pessoas no bingo, leilão e expectadores das apresentações feitas no palco do arraial. Todas as atividades, são realizadas num mesmo espaço compartilhada por todos estratos sociais, onde podemos encontrar desde um grande comerciante, que tem um expressivo prestígio social na cidade, até um indivíduo anônimo, sem nenhuma relevância social.

Os “vários sentidos e funções aparentemente irrelevantes da festa” apontada pela autora, nos remete a uma breve análise das relações sociais contidas na festa. No período da festa, são formadas várias equipes de trabalho, onde as pessoas que se envolvem convivem durantes dez dias desenvolvendo as atividades para o bom funcionamento da novena e do arraial. Essas pessoas criam relações efêmeras, que duram apenas no período da festa, podendo se encontrar nos festejos do ano seguinte.

Os festejos de Nossa Senhora do Rosário são também um ponto de encontro de devotos, ex-moradores de Itacoatiara, amigos e familiares. São oriundos de cidades circunvizinhas, da capital Manaus e até de outros estados brasileiros. A presença destas pessoas é mais intensa nos últimos dias dos festejos, pois aproveitam para ficar para o dia dos finados que é celebrado no dia 02 de novembro.

A festa também cria uma certa identidade local e regional. Momento em que as pessoas da cidade de Itacoatiara e os “filhos de Itacoatiara” (patrícios da cidade) que vivem em outros municípios aproveitam para visitar seus familiares, inclusive, antes da existência do Festival da Canção de Itacoatiara (FECANI), a festa do Rosário era a manifestação festiva de referência para o retorno à cidade. No sentido regional, a festa toma certa visibilidade, dada a sua divulgação pelos meios de comunicação, como rádio, TV e internet.

Como já dito, há participação de um número expressivo de pessoas que auxiliam na organização dos festejos do Rosário. Entre os diversos interesses, estão o de dar visibilidade para a festa, por se tratar de uma das manifestações mais importantes da cidade: a festa da Padroeira da Prelazia e do Município de Itacoatiara. A Prefeitura Municipal, tem interesse em desenvolver e participar da festa, com intuito de populariza-la e fortalecê-la como um dos ícones do quadro de eventos e turismo da cidade.

O sucesso da festa, configura-se a partir do momento em que todas as equipes fazem um balanço de suas atividades e culmina com a equipe da tesouraria apresentando o valor total arrecadado. Após a prestação de contas, algumas equipes combinam entre si uma confraternização para celebrar o término dos trabalhos.

Pode-se observar também que a festa do Rosário é lugar em que algumas pessoas adquirem prestígio e relevância social, como é o caso de alguns comerciantes que doam dinheiro, alimentos e etc., e tem seus nomes divulgados pelos apresentadores nas noitadas de arraial, mas há também pessoas que preferem o anonimato, por motivos de pagamento de promessas.

Tomando a ideia de um ciclo festivo proposta por Brandão (1975), observa-se que os festejos de Nossa Senhora do Rosário em Itacoatiara, têm nas primeiras reuniões para formulação da comissão organizadora do evento. Encarrega-se para uma organização geral da festa, com a criação e coordenação das várias comissões, que contam com a participação de clérigos, comerciantes, representantes de escolas, funcionários públicos, trabalhadores autônomos, desempregados e outros. Primeiro, há a construção de um calendário de trabalho que se constrói no decorrer do ano, que envolve a formação das comissões de trabalho e suas atividades.

Observou-se que nas primeiras reuniões de preparação dos festejos, foi elaborado um cronograma de atividades e a definição de datas para compor o calendário da festa. As pessoas que fazem parte das comissões de trabalho, são chamados de “festeiros”. As atividades voltadas para a preparação da festa do Rosário, também podem ser classificadas como “estrutura ritualísticas”, por envolver práticas de “agradecimentos, pedidos e orações”.

Como já relatada sobre a constituição das comissões que fazem parte da organização da festa, gostaria de citar que elas reúnem pessoas que tem afinidade ou já desenvolvem atividades na vida civil. Como é o caso da Comissão de Marketing e divulgação, composta por pessoas que trabalham nos meios de comunicação, como representantes de jornal impresso, de rádios, emissoras de TV local, afiliada à Rede Vida de Televisão. Outro exemplo é a comissão de donativos, composta por pessoa influentes na sociedade civil itacoatiarense, empresários, representantes da Associação Comercial de Itacoatiara, professores de escolas públicas e particulares e funcionários públicos. A comissão da limpeza é constituída por representantes da Secretaria Municipal de Meio ambiente, responsável pela limpeza da cidade.

Eduardo Fonseca (1999) nos sugere que há três tipos de funções dentro da festa: a “função religiosa, proselitista e de aprendizagem”. Na Festa do Rosário, a função religiosa ocorre na dinâmica das atividades desenvolvidas em homenagens à Santa. Esta dinamicidade é percebida no calendário festivo, onde toda comunidade católica da Prelazia mobiliza-se para participar das atividades religiosas, como nas celebrações, romarias, procissões etc. Em 2003, nota-se que dentre as atividades mais significativas, foram aquelas definidas como a “Proclamação do mês do Rosário”, “Semana do Mundo Unido”, “Consagração do Colégio Nossa Senhora do Rosário”, “Peregrinação de Nossa Senhora do Rosário pelas Paróquias da Cidade”, “Semana da Família”, “Casamento Comunitário”, “Romaria de Nossa Senhora do Rosário”, “Círio de Nossa Senhora do Rosário” e o “Dia de Nossa Senhora do Rosário”. Todas estas atividades, têm o intuito de expressar a foça da religiosidade cristã na cidade.

A “função proselitista” refere-se à ligação mais intensa da igreja Católica com a comunidade, é o momento da Festa do Rosário em que a comunidade religiosa católica estende suas redes de relações sociais para “fora de si”, momento esse, que se estabelece uma relação com aqueles que estão afastado das manifestações religiosas da Igreja católica e de pessoas que estão fora cidade, mas aproveitam o momento festivo para retornar.

Por isso, é importante a divulgação do calendário festivo com meses de antecedência. Momento em que as pessoas aproveitam para se inserir nas comissões ou simplesmente vir aos festejos. Como é o caso de uma senhora de 67 anos que não quis se identificar, participa da festa desde criança. Em suas palavras, ela afirma: “Participo da festa desde criança, devido à cura obtida de uma doença grave, promessa a minha querida santinha para que eu pudesse ficar curada. E hoje, com sessenta e sete anos, retorno todos os anos à festa, para quitar minha dívida com a santa. Como eu sei que a igreja vai passar por uma reforma ainda este ano, estou fazendo contatos na Itália para conseguir recursos financeiros a fim de contribuir com os trabalhos”. Observa-se, com este relato, que a devoção religiosa se mantém, inclusive, com o comprometimento da fiel para conseguir recursos para a reforma da igreja.

A função de “aprendizagem” na festa do Rosário, ocorre com a difusão da doutrina cristã que se expressa na festa, envolvendo a participação de grupos da igreja, como o da Catequese, grupo de Crisma, Pastoral da Juventude, Pastoral da Saúde e outras. A função aprendizagem fica claro no grupo de Jovens da paróquia de Nossa Senhora do Rosário, com atividades semanais com estudos do catecismo da Igreja Católica e dinâmicas de grupos que ajudam aliviar as tensões advindas da idade, pois muitos estão em transição para a fase adulta.

Outro exemplo, são os jovens do Movimento dos Focolares17, que apesar de não estarem diretamente ligados a uma paróquia da igreja, mais composto por membros de várias paróquias da cidade, também se reúnem com frequência para trocar experiências de vida, estudar aspectos de seus fundamentos alinhados à moral religiosa da Igreja Católica. Tem como ideal o “mundo unido”. Durante a festa, ambos os grupos se reuniram para participar dos festejos, sobretudo, na celebração da “Semana do Mundo Unido” e “Louvor a Nossa Senhora do Rosário”.

Por fim, Fonseca (1999) nos demonstra que a festa assume uma “beleza estética”, que segundo ele, estaria relacionada “a todo o esforço que visa não apenas agradar aos deuses, mas também aos homens, pois nela estão em jogo o prestígio dos fiéis, do sacerdote e a capacidade de atrair adeptos em potencial”. Na festa do Rosário, podese observar que todas as cerimônias desenvolvidas durante os festejos, como romarias, peregrinação, alvorada, procissão, arraial assumiriam esta função.

Fazendo um contraponto histórico sobre a festa do Rosário, ressalta-se um relato extraído do livro de tombo da Prelazia entre os anos de 1911-1952. Faz referência à preparação da festa de Nossa Senhora do Rosário, no dia 24 de outubro de 1936, em visita Pastoral do Bispo Diocesano de Belém (PA) relatado por uma Freira que lhe acompanhava. O documento descreve o início do novenário em preparação à festa, a descrição física da igreja e percepção sobre o povo religioso:

Com os exercícios da novena preparatória da festa da Padroeira da Prelazia Nossa Senhora do Rosário, que abriga em uma pobre e pequena igreja, ainda nesse legado colonial é que de nenhum há [sic] parte comparada às necessidades atuais da população, não só pelo número, com maior grau de civilização (livro tombo da prelazia de Itacoatiara, 1936, p. 38).

Observa-se que, apesar da Prelazia de Itacoatiara ter sido criada em 1963 pela bula Papal, em 1936 falava-se em Prelazia como parte da igreja atrelada a Manaus. Ressalta-se a necessidade de ampliação da igreja, bem como a percepção no avanço religioso da população local, com a expressão “maior grau de civilização”. O novenário era tido como atividades voltadas para a preparação para o dia da festa, com o envolvimento dos clérigos locais e da população.

É importante passar em revista as entrevistas realizadas no contexto da pesquisa com antigos paroquianos e participantes da festa de Nossa Senhora do Rosário, com intuito de estabelecer comparações de edições passadas dos festejos com o momento observado em 2003. A faixa-etária das pessoas entrevistadas girava entorno do 50 a 85 anos de idade.

Destaca-se entre os entrevistados o Senhor Paulino Nazaré, de 85 anos de idade. O mesmo participa da festa de Nossa Senhora do Rosário desde os doze anos de idade (por volta de 1930). Conta que, antes de iniciar os festejos, eram realizadas reuniões de preparação. Segundo ele, “eram feitas reuniões para preparação das comissões para direção da festa, o leilão, o bingo, quermesses; tinha também os músicos e o coreto bem em frente da quadra”. O leilão observado por seu Paulino, a partir de 1930, foi descrito da seguinte forma: “o pessoal começava a vender. Os leiloeiros, quando anunciavam, aumentavam uma nota de valor no produto quando arrematavam”. O leilão, mostrava-se como uma atividade importante da festa para angariar dinheiro, pois implicava em regateadores que chegavam, inclusive, a disputar por diferentes arrematantes de bens postos na mesa do leilão.

Sobre os aspectos físicos da festa, sobretudo da igreja, comenta, “a igreja era de taipa com barro e depois embuçaram (cimentaram). “Este relato faz referência ao ano de aproximadamente 1929, com a construção da segunda igreja de Nossa Senhora do Rosário, pois a primeira igreja, segundo Silva (1999), era “primitiva matriz da Paróquia de Serpa, era pequena e tosca, templo de madeira coberto de palha e estava regularmente abastecida de ornamentos e alfaias”, lembrando que a primeira igreja foi construída a partir de 1759.

E nas palavras do Senhor Paulino, a 2ª igreja matriz localizava-se em frente ao rio. “A Igreja era de frente para cá, para o rio, dava para aquele muro onde é hoje a rua, e depois os fundos dava para lá, onde é a atual matriz e tinha um campinho de futebol na frente da igreja”. Sobre os primeiros dias de arraial, relatou: “na alvorada vinha tocar umas bandas de música, que tinha na cidade, era boa! Tocava no coreto que ficava bem em frente onde é a atual quadra de esportes do município, assim do lado, quase em frente daquela livraria que está hoje na frente da igreja”. Lembrando que em 2003, a prática da alvorada persiste no início dos festejos de Nossa Senhora do Rosário.

O Senhor Paulino comenta que a festa atraía pessoas do interior de Itacoatiara: “rapaz, quase eu não ia participar daquele negócio da beirada, mas vinha muito barco, aquele pessoal vinha de motorzinho. Naquele tempo, era mais regatão que chamavam, mas o pessoal participava muito (…)”. As pessoas que senhor Paulino se referia eram oriundas de comunidades ribeirinhas e cidades próximas de Itacoatiara, aproveitavam a visita do Bispo de Manaus, “o Bispo vinha de Manaus para celebrar no dia da Santa, o batizado, crisma e aproveitavam para se casar”. Sobre o início do arraial, comenta, “o arraial, começava às 20h e terminava às 23h, naquele tempo a luz se apagava cedo”.

Foi perguntado ao Sr. Paulino, 85 anos, se ele sabia o porquê da festa ser celebra no dia 1º de novembro de cada ano, e não no dia 07 de outubro como manda a tradição católica, e ele explicou: “no dia 07 de outubro era feito uma caminhada até a entrada da cidade e depois retornavam para igreja cantando e rezando. No dia primeiro de novembro, é celerada também, porque é Dia de Todos os Santos. Segundo ele, a procissão estruturava-se da seguinte forma, “primeiro vinham os meninos da primeira comunhão, depois vinha o pessoal do Apostolado Coração de Jesus, em seguida os Coroinhas, depois o padre, em seguida o andor com a santa, atrás do andor vinham os músicos e o povo que estava por todos os lados. O trajeto da procissão era feito pelas ruas 07 de setembro, 10 de novembro, Rua Nossa Senhora do Rosário e outras até chegar na igreja Matriz. A festa acabava com a procissão, mas no dia seguinte, tinha a missa no cemitério, pois é o dia dos finados. “

Foi perguntado ao Sr. Paulino, o que tinha mudado na festa no decorrer dos anos. Ele nos respondeu dizendo que tinham tirado a orquestra que tocava nas alvoradas: “tiraram a orquestra que tocava na alvorada, e hoje em dia, só tem essas bandas aí. Teve uma vez que a festa foi realizada dentro do cercado da Matriz, atrás da atual igreja, mas só um ano que fizeram isso; mudou o jogo de roletas que tinha e hoje não tem”. Perguntamos a ele, qual é a importância da festa da padroeira para o município. Ele nos respondeu dizendo: “antes, a festa tinha capacidade para unir todas as comunidades da Prelazia”. Em sua concepção, o que poderia mudar para melhor era na apresentação de mais conjuntos musicais, “rapaz, agora deixa como está mesmo, porque mudar não tem outro jeito, a não ser que tivesse mais conjuntos musicais”.

Outra entrevista que merece ser mencionada é a de Dona Neuza de Oliveira, 80 anos de idade, participante da festa de Nossa Senhora do Rosário desde aproximadamente 1960. Ela faz parte do grupo da liturgia. Dona Neuza comenta que as festas de santo mais populares do município de Itacoatiara é a festa da padroeira Nossa Senhora do Rosário e do Divino do Espírito Santo, do Bairro da Colônia, de onde é moradora. Em suas palavras, ela diz: “onde começava com mais festas era aqui no Divino”. Silva (1999, p. 182) relata que a devoção ao Divino ainda em caráter particular, foi iniciada desde 1938, “com interesse especial do bairro da Colônia, de quem se tornou santo padroeiro (…) ano para ano, foi tomando maior repercussão”.

Dona Neuza, relata que antes não tinha participação das comunidades do interior nos festejos, era mais das pessoas da cidade: “do interior não tinha participantes, mas sim daqui das comunidades da cidade. Ano passado ele (o vigário da prelazia), convidou o povo para vim trazer seus padroeiros, parece que teve alguém, e já começaram, mas ainda não tinha muita participação”. Observa-se neste relato que a participação das comunidades, no dia da procissão com os seus santos padroeiros, iniciou em 2002. Dona Neuza, comenta ainda que o arraial contava com atividades de vendas de guloseimas, como churrascos, tacacá, mungunzá, galinha fria e muitos mais.

De fato, pode-se observar que a festa de Nossa Senhora do Rosário no ano de 2003, apresenta diferentes motivos ou significados, expressados por diversos segmentos sociais que encontram na festa. As questões religiosas apresentam-se como ponto de agregação social, sobretudo, dos sujeitos envolvidos, como os membros da igreja católica local, das comunidades prelada e dos fiéis como um todo. Esta é uma festa religiosa que persiste no curso do tempo. Pressupõe se uma amalgama da devoção à Santa, pagamento de promessas, estreitamento de laços de parentesco entre consanguíneos e afins, além de proporcionar relações de solidariedade entre os fiéis e moradores da cidade, instituições, empresários e o poder público local.

As relações de comércio entre outras ações são voltadas para promoção do município em decorrência do evento, e não propriamente em razão da festa. Porém, nota-se que a fundação do Estado e do poder da Igreja católica no mundo colonial amazônico, confunde-se com a criação da Vila de Nossa Senhora do Rosário de Serpa. A festa do Rosário, expressa-se numa dinamicidade da cultura local, agregando valores de acordo com as necessidades de seus participantes, implicando em demandas da contemporaneidade, como a criação de trabalhos temporários conforme suas necessidades, prestígio de personalidades em nível local com a possibilidade de desenvolvimento de um turismo religioso na cidade.

Foto preta e branca de rosto de mulher

Descrição gerada automaticamente

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14 Disponível em: https://www.franciscogomesdasilva.com.br/coronelismo-e-imprensa-na-formacao-do-poder-municipalem-itacoatiara/. Coronelismo e imprensa na formação do poder municipal em Itacoatiara. Consultado em 03/02/2021.

15 O jornal “Paladio”, traz a publicação com o nome dos responsáveis dos festejos de Nossa Senhora do Rosário para o ano de 1909. Com o título “Religião”. “Communicou-se o vigário desta parochia que para a festividade de N. S. do Rosário, no próximo anno, foram nomeados: Juiz- Floriano Eleuterio Mendes; Juiza – D. Gregoria Souza; Juiz do mastro – Domingos da Costa Barriga; Juíza do mastro – Senhorita Delcidia Mattos.

16 Vale salientar que a cidade de Manaus teve a inauguração de sua estação elétrica em 22 de outubro de 1896, disponível para 06 ruas da Capital. Disponível em: https://www.redetiradentes.com.br/energia-eletrica-completa120-anos-em-manaus/. Energia elétrica completa 120 anos em Manaus. Consultado em 03/02/2021.

17 Para mais informações consulte https://www.focolare.org/pt/

Continua na próxima edição…
*O autor é natural de Itacoatiara, vem trabalhando com a temática sobre patrimônio cultural a mais de duas décadas. É formado em Ciências Sociais (UFAM) e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (PGSCA/UFAM) especialista em Festas Populares e Religiosas da Amazônia. Formado em Direito (ULBRA/Manaus), MBA em Gestão, Licenciamento e Auditoria Ambiental (Anhanguera-Uniderp). É professor Universitário. Publicações em coautoria nos livros “Cultura popular, patrimônio imaterial e cidades” (2007) e “Culturas populares em meio urbano” (2012). Autor do livro “A Senhora, o Folclore e o Festival” (2022). É Assessor Jurídico e vem prestando assessoria ao patrimônio imaterial etno-história da Amazônia para empresas de licenciamento ambiental e arqueológico.

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