
*Francisco Calheiros
Continuação…
Testemunho
Chamo-me Maria, sou professora universitária e fruto de um relacionamento com um presidiário. Acabo de concluir Mestrado em Educação. Fui concebida dentro de uma cela da cadeia pública Raimundo Vidal Pessoa, entre rebeliões e espera por um advogado designado pelo poder público. Minha mãe amava aquele homem, que somente depois, bem depois, soube reconhecer a importância dela na sua vida. Vendeu seu terreno na Vila Marinho para pagar a inscrição no vestibular da Ufam. O amor induz a uma mudança de comportamento e até mesmo de rumo. Não podemos, contudo, dizer que o amor não vale a pena. Disse um escritor português, talvez Fernando Pessoa, que tudo vale a pena, se a alma não é pequena. Será mesmo? E a reciprocidade? E os projetos? Amar sem projeto é um dos defeitos do sentimento humano. Talvez por isso os relacionamentos de hoje sejam tão efêmeros, tão pífios, tão inócuos e tão amorosamente bizarros.
Não me vejo suficientemente madura para julgá-lo, mesmo que trinta anos depois. A história precisa de um determinado espaço de tempo para se transformar em objeto de estudo. Do contrário, vira lenda. Foi muito fácil envolver-se com a máfia para ajudar a família e comprar cestas-básicas para os seus colegas professores que passavam fome, ou mesmo investir no sindicalismo. Não realizou o maior de seus intentos: comprar uma sede própria para o sindicato dos profissionais da educação, que continuam alugando um quartinho de alvenaria no centro da cidade. E pior: continuam sendo guiados por dirigentes manipulados por partidos políticos. Continuam sendo usados de dois em dois anos. Errou. E pagou caro por seus erros. Um irmão assassinado. Uma casa incendiada. Uma mãe que morreu sem a devida assistência. Enfim, uma sucessão de desastres para quem tinha o direito de dar sua contribuição enquanto educador. Creio que o seu maior erro foi ter ingressado no magistério, que, no Brasil, continua sendo o caminho mais
curto para quem deseja ingressar no mercado de trabalho. Não acredito, entretanto, que isso o tenha levado à sala de aula. Minha grande mágoa deste País foi não lhe ter dado uma condenação, assim ele poderia ter tido a oportunidade de voltar ao seio da sociedade. Quem erra, como ele o fez, precisa ter a mão pesada daquela deusa sobre seus ombros, ainda que às vezes sendo levada pelo caminhão da limpeza pública. Mas, no Brasil, os presos que aguardam por uma decisão da Justiça parecem serem motivos de condecoração para os que governam este País e têm o poder de aplicar a
Lei.
Hoje, mesmo na fase adulta, poderíamos fazer o que nunca foi possível: pai e filha passearem em uma praça pública, mesmo que seja, por ironia, na ponte ao lado daquele sistema carcerário. As obras estão bem adiantadas.
– Pai. Papai.
– Sim, filha!
– Pai!
– Cuidado Maria, você pode cair.
Aos três anos de idade, calculo eu, Maria passeava com seu pai em um local público. O vestidinho. A trança no cabelo. O sapatinho cor-de-rosa. No muro da cadeia, o desenho de várias casas pintadas nas mais diversas cores. Imaginava -me ser aquela menininha. O abraço. A pipoca. O carrinho elétrico e uma volta de dez minutos a um custo de cinco reais. Dizem que as filhas são mais chegadas ao pai. Um escritor brasileiro, de cujo nome não me lembro no momento, escreveu certa vez: “Meu filho foi embora. Foi embora e eu não o conheci”. Ele adorava parodiar Graciliano Ramos e sua vida agreste. Agora é minha vez: meu pai foi embora. Foi embora e eu não o conheci. Os manuscritos que ele redigiu dentro daquela cela, encontrei-os por acaso dentro de uma velha pasta que minha mãe guardou por todos esses anos. Uma letra cursiva. Uma redação lapidar. Alguns poemas de amor e de revolta. Logo ele, que se inspirou em “Memórias do Cárcere”, nunca imaginou que aqueles manuscritos pudessem um dia ser publicados. Vou fazê-lo, não somente em sua memória, mas ainda por sua determinação de documentar suas atitudes, ainda que marcadas por erros.
Era dia de visita naquela cadeia pública. Como de costume, os familiares brigavam por um espaço na fila. A forte chuva expunha a falta de saneamento básico de uma cidade a ser construída. Muita chuva. Muita água. A Avenida Sete de Setembro parecia não ter fim. A distância podia-se ver a cadeia pública. A passos largos, mamãe, com a barriga já assumindo outros contornos, fazia o percurso de todos os sábados. Em uma sacola, o prato preferido de meu pai. Na verdade, um marmitex preparado com a dedicação de quem ama. Era inevitável não ser atingida pela chuva. A novidade daquela visita era que eu já tinha nome.
Foi a última da fila. Mas estava ali. Muito desejo. Muita coisa a dizer. Seu nome constava da lista dos aprovados no desorganizado vestibular de todos os anos. Uma edição extra de A Crítica ela levava nas mãos. Queria que ele visse o seu nome na ordem alfabética. Queria ganhar os parabéns. Queria um beijo de presente. Queria mais do que nunca aquele homem. A outra novidade era que seu processo já estava novamente nas mãos do juiz. Na segunda-feira, o magistrado daria sua sentença, levando em conta a condição de réu primário. Mas havia a fuga. Enfim. A expectativa era grande. Réu primário. Bom comportamento. Uma boa parte da pena já cumprida entre rebeliões e manuscritos. A fuga era um agravante. Em todo caso, haveria oportunidade de defesa. Esse é o princípio da Justiça, cuja escultura foi levada pelo caminhão da limpeza pública.
Era a última da fila. Um carro do Instituto Médico Legal parou em frente à porta central da cadeia pública. Dois homens cumpriam o velho ritual. Muita chuva. Muita água. Sempre a chuva para lavar a sujeira doméstica de uma sociedade que vive em torno do patrimônio. A água e o princípio da purificação. A força do vento suspendeu o plástico negro usado no transporte dos corpos. Carol observava a tudo quase que da ponta dos pés. A sirene da ambulância mortuária inundou vários quarteirões. Não podia ser. Não podia fazer um julgamento precipitado. A espera, os planos, a mesa posta, a cama mal utilizada, tudo teve um custo muito alto. Não podia ser. Não podia ser. Era injusto. Droga! Não poderia ser. Estava vendo coisas. Pode não ser ele. Era a chuva que prejudicava sua visão. Só podia ser a chuva. Novamente a água. Entretanto, de uma coisa tinha quase certeza: aquela camisa marrom não lhe era estranha. A maca foi cuidadosamente colocada no seu devido lugar. Fechou-se a porta. Encerrou-se a cena do grande teatro, que é a vida humana. O sistema prisional brasileiro não ressocializa nem dá segurança. Uma das poucas coisas que faz é preservar para a morte.
Esta é uma obra de ficção, e qualquer semelhança com pessoas ou fatos da vida terá sido mera coincidência.
Manaus, Itacoatiara,
Chácara Dona Nazaré,
entre os anos de 1989 e 2008.
na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
Views: 4