Manaus, 12 de março de 2025

A senhora, o folclore e o festival

Compartilhe nas redes:


*Éder de Castro Gama

Continuação…

O Santo presente na Festa

Para responder a segunda questão, pretende-se verificar a associação muito forte do Santo na Festa. Cabe fazer deferência a Émile Durkheim (1996) em “As formas Elementares da Vida Religiosa” ao chegar à conclusão de que “a religião é a base de todas as instituições”, perpassando por toda vida do ser humano.

Queiroz (1958), ao fazer um estudo sobre as funções da dança de São Gonçalo no interior baiano de Santa Brígida e no interior do Estado de Alagoas, ressalta que entre as “funções latentes” desta manifestação cultural está o seu caráter eminentemente religioso, onde a dança, para ser executada, deve ter um controle social sobre aqueles que executam e assistem a manifestação.

Para que a dança seja aceita pelo espírito cumpre afastar dela – e, portanto, de executantes e povo – tudo que se relacione a vícios, isto é, bebida, jogo, fumo, namoro e disputas, e que se observem rigorosamente as regras de vestuário e de dança. Nessa comunidade, preocupada com a pureza de costumes e a religião, a dança, associando-se estreitamente a tais maneiras de ver, desempenha assim um papel de controle social, ao lado de outra forma de controle existentes (QUEIROZ, 1958, p.72).

Desta forma, a dança assumiria a função de reforço do sentimento de coesão grupal, tanto para os executantes quanto para os expetadores da dança. Diante do exposto, torna-se claro entendermos porque as pessoas têm suas vidas balizadas pela moral católica, ou um adepto da umbanda com suas práticas sociais marcadas por motivos simbólicos. É guiado por estas práticas que um dirigente de uma “brincadeira” folclórica decide colocar um boi ou uma dança como pagamento de promessa a um determinado santo. Para ilustrar este fato, destaca-se, como exemplo, a história de Zé Preto, um dos mestres da cultura popular da cidade de Manaus. Ele recebeu de presente um boi folclórico vindo do estado do Maranhão como pagamento de promessa de uma pessoa da religião de matriz Africana, que teve uma graça alcançada, que prometeu colocar a brincadeira de boi nas ruas de Manaus.

A quadrilha Murupiaras do bairro de Petrópolis, da cidade de Manaus, grupo da paróquia de São Pedro47, em observações feitas no 51o Festival Folclórico de Manaus, no dia 15 de junho na arena do festival, entraram em procissão com imagem de Nossa Senhora de Aparecida, em um andor para ficar na capela da igreja, que fazia parte do cenário da dança para sua apresentação. Nas palavras da Senhora Magá48, “a igreja de devoção da quadrilha é feita como alegoria na apresentação durante os três anos de apresentação”. A Santa tornou-se padroeira da associação folclórica quando, no ano de 2004, se apresentaram no dia 19 de junho, dia de Sant’Ana e, com isso, esta santa ficou eleita como padroeira da brincadeira.

A Santa veio em sonho e me disse que a padroeira da brincadeira deveria ser Nossa Senhora de Aparecida, eu falei para todos os integrantes e eles acataram. (…) No momento que a capela da Santa é montada juntamente ao andor, os brincantes fazem pedidos à Santa e deixam em pedaços de papel e bilhetes que devem ser para a capela que é montada como cenário para o Festival.

Observa-se que na fala de muitos “donos de brincadeiras” folclóricas da cidade de Manaus, a coordenação e a direção destas organizações assume um papel de missão divina ou social. Muitas destas brincadeiras nasceram de pagamentos de promessas aos santos padroeiros de famílias, responsabilidades que perpassam de geração em geração, por agregação social instituídos por laços de solidariedade entre moradores de uma rua ou de um bairro e como forma de agradecimento por um dom recebido, neste caso, os músicos e cantores das brincadeiras. Nota-se que estes coordenadores são figuras carismáticas que adquirem prestígio social frente à comunidade e ao poder público a fim de conseguir coisas para o benefício da associação folclórica.

Ainda tentando responder a relação do Santo presente na festa, seria interessante recuperarmos as ideias de Durkheim (1996) referentes à crença e ao rito, onde os classifica como categorias fundamentais de fenômenos religiosos. Para o autor, as crenças são tidas como sistemas de representações que exprimem as coisas classificadas em sagradas e profanas. A relação entre o sagrado e o profano é heterogênea, onde “as coisas sagradas são aquelas que as proibições protegem e isolam; as coisas profanas são as que se aplicam a essas proibições”. A crença é a fé que o indivíduo deposita nas “coisas divinas”, no místico, nas lendas, no religioso. Neste sentido, por exemplo, pode-se observar na festa de Nossa Senhora do Rosário, em Itacoatiara, que a crença se manifesta na fé que os fiéis depositam na santa para realizar seus pedidos.

Em relação aos ritos, seria: “as regras de conduta que prescrevem como o homem deve se comportar as coisas sagradas é a forma simbólica que os indivíduos usam para exercitar a fé” (DURKHEIM, 1996, p. 24). No âmbito da festa, os indivíduos identificam-se através da devoção, das promessas, das novenas (missas realizadas em nove noites), procissão e outras formas ritualísticas exercidas pelos fiéis. Na mesma linha de pensamento, Roberto DaMatta (1997), utiliza a ideia de ritual como uma forma de interpretação que permita distinguir as invariantes (mudanças) da cultura brasileira. Segundo ele, as ideias de um tempo progressivo das tecnologias e dos acontecimentos são integradas a um calendário que se repete ano após ano, e a repetição ritual, registrada nas festas que “todo ano tem”, é um dos caminhos seguidos por este autor para apreender as representações duradouras que essa sociedade faz de si mesma.

Da Matta (1997) distingui três conjuntos que, reunidos, formariam a estrutura elementar dos nossos festivais, onde tudo para, como as paradas militares, os desfiles carnavalescos e as procissões religiosas. As paradas militares dominam o imaginário sobre o Estado nacional; os desfiles carnavalescos recaem sobre o povo brasileiro e as terceiras manifestações sobre o “outro mundo”. O que o autor nos sugere é que a sociedade brasileira é formada por uma estrutura de posições desiguais onde, por exemplo, fazer referência à disciplina militar nos desfiles dos dias 07 de setembro, é diferente das inversões brincalhonas, suntuosos, explosivas, escandalosas do Carnaval. A reconciliação entre a ordem e o seu contrário, nos desfiles religiosos, em procissão ou cortejo, buscam o céu.

Pensando a sociedade brasileira pelos vieses das festas, percebemos que ela é fascinada pelo tema da hierarquia. Os rituais de todo dia, que equacionam as pequenas crises cotidianas, reforçam essa observação. Para esta reflexão, nota-se que o terceiro momento festivo, o religioso, é colocado pelo autor como bem sugestivo. Para sua importância simbólica, transcende a todos os momentos da vida cotidiana de determinados grupos, porque não dizer de determinados grupos folclóricos que se manifestam a partir de um motivo religioso ou pagamento de promessa.

­­­­__________________

47 Entrevista concedida ao inventário dos Grupos Folclóricos da cidade de Manaus no ano de 2007, da Secretaria Municipal de Cultura coordenado pelo pesquisador Alvatir Carolino da Silva, gestão do Prefeito Serafim Correa no ano de 2007. Para maiores informações consultar o livro Festa dá Trabalho! As múltiplas dimensões do trabalho na organização e produção de grupos folclóricos da cidade de Manaus. Manaus: Edição Muiraquitã, 2012. Que o pesquisador Alvatir Carolino da Silva, fez como fruto de sua dissertação de mestrado sobre os grupos folclóricos de Manaus.

48 Dona da Dança Folclórica Murupiaras.

Continua na próxima edição…

*O autor é natural de Itacoatiara, vem trabalhando com a temática sobre patrimônio cultural a mais de duas décadas. É formado em Ciências Sociais (UFAM) e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (PGSCA/UFAM) especialista em Festas Populares e Religiosas da Amazônia. Formado em Direito (ULBRA/Manaus), MBA em Gestão, Licenciamento e Auditoria Ambiental (Anhanguera-Uniderp). É professor Universitário. Publicações em coautoria nos livros “Cultura popular, patrimônio imaterial e cidades” (2007) e “Culturas populares em meio urbano” (2012). Autor do livro “A Senhora, o Folclore e o Festival” (2022). É Assessor Jurídico e vem prestando assessoria ao patrimônio imaterial etnohistória da Amazônia para empresas de licenciamento ambiental e arqueológico.

Views: 6

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques